No que ficou conhecida como a fase distante de Nova Iorque em sua carreira, Woody Allen reservou as passagens para a Espanha e só depois foi organizar o filme que sairia da viagem. Da gaveta de projetos, ele chegou a um manuscrito ambientado em São Francisco, retrabalhado para fazer sentido na Europa, já que o próprio governo catalão injetaria dinheiro no orçamento. O resultado está na prateleira da casa de Penélope Cruz.
Em Vicky Cristina Barcelona, Vicky (Rebecca Hall) e Cristina (Scarlett Johansson) viajam a Barcelona juntas. As amigas tem objetivos distintos, uma quer estudar as paisagens para sua tese, enquanto a outra busca a diversão. Lá, elas são hipnotizadas por um artista local, Juan Antonio (Javier Bardem), que na primeira noite já sugere um ménage.
Vicky se enoja, Cristina fica empolgada e Juan Antonio vai conquistando a simpatia delas. O problema está na ex-esposa, papel de Penélope Cruz, uma mulher de instabilidade emocional e com faro para confusão. Ela demora a chegar na história, e só o faz passada a marca de 50 minutos, quando a atriz mistura o inglês e espanhol em insípidas fungadas emocionais.
Como de praxe para a filmografia de Allen, o filme se centra em muita prosa e belos cenários sendo atravessados por passos e sentimentos. Vicky está noiva de Doug (Chris Messina) e pondera cada ação ao lado de Juan. A jornada de sua personagem, a primeira palavra no título ilustrativo, perde foco quando Maria Elena chega, orbitando o caos ao redor de Johansson e Bardem, atores requisitados por Allen a deixarem tudo na mesa.
As cenas que envolvem beijos e contato íntimo, em especial entre Cruz e Johansson, foram tão desafiadoras quanto divertidas para as atrizes. Bardem, que se relacionou com Penélope durante o período de gravações de Vicky Cristina Barcelona e casou-se com ela dois anos depois, é inebriante no papel do conquistador espanhol. Seu sotaque é afrodisíaco, e cada galanteio chega munido de muita sedução acumulada, além de certo toque de antagonismo.
Mais interessado em confundir as mulheres que povoam a mente do artista, o filme de Woody Allen passou quase batido pela temporada de premiações. A menção de Cruz, na verdade, é a única para o longa, na terceira vez que Allen ficou de fora da disputa de Roteiro ou Direção para uma obra indicada em Atuação. A vitória da espanhola também saiu do esperado.
Kate Winslet, por O Leitor, estava vencendo tudo: Globo de Ouro, Critics Choice e SAG, mas no BAFTA, ela trocou de categoria, onde inevitavelmente foi indicada e vencedora. Assim, com uma vitória na Academia Britânica, Cruz tomou a dianteira e arrematou o primeiro troféu. No belo discurso do Oscar, ela agradeceu Pedro Almodóvar, parceiro de longa data e diretor do filme que indicou-a pela primeira vez, Volver, em 2007.
No ano seguinte, ela repetiria a indicação por Nine, mas foi em 2022 que Cruz chegou perto de vencer novamente. A menção surpresa e sem precedentes para Mães Paralelas poderia indicar um caminho ao palco, mas a falta de apoio da comissão espanhola, que elegeu outro como seu candidato à Filme Internacional, provou-se de fundamental papel na campanha. Naquele ano, venceu Jessica Chastain por Os Olhos de Tammy Faye.
Woody Allen ainda tinha alguns anos de prestígio e ovação antes das denúncias de abuso sexual por parte da filha adotiva voltarem à superfície, colocando o americano distante dos holofotes. Agora, ele trabalha majoritariamente na Europa, onde os abusadores costumam ser celebrados, dirigindo atores locais em filmes menores. A vitória de Cruz, junto do reconhecimento do próprio roteirista por Meia-Noite em Paris em 2014, são reflexos de uma Hollywood ainda tolerante a certos acontecimentos. Hoje em dia, pegaria mal.
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