Clube Zero quer matar os ricos de fome

Drama com ares de Wes Anderson passou por Cannes e traz professora sem classe – e sem apetite

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A expressão eat the rich ficou no passado. O que a diretora austríaca Jessica Hausner pratica em Clube Zero, seu filme saído de Cannes 2023, é justamente o oposto. Ou melhor, trata-se de uma reorganização da ideia original: ao invés de matá-los – ou comê-los, ela quer mesmo é deixá-los esfomeados.

Em uma escola de muito prestígio, tamanho pedigree que o corpo facultativo chama os adolescentes de pupilos, ao invés de simples alunos ou estudantes, a professora Srta. Novak (Mia Wasikowska) chega abalando. Docente de nutrição, forma um grupo com 7 dos garotos, em busca de “Comer Conscientemente”.

A priori, as reuniões são marcadas por trocas espirituais, rotinas alimentícias e o fracionamento das refeições. Entre os pupilos, estão um garoto queer deixado de lado pela família e que sofre com diabetes; uma menina com distúrbios alimentares; outra com personalidade gótica e sonho de ser trapezista; e, ainda, um garoto de origem humilde que só está ali para ganhar pontos e conseguir a bolsa de estudos.

Little Joe, filme de Hausner lançado em Cannes 2019, saiu do Festival com o prêmio de Melhor Atriz para Emily Beecham (Foto: Pandora Filmes)

A Srta. Novak é solícita e paciente. Não impõe os esoterismos, tampouco cria obrigações, metas ou ordens. A direção de arte segue o alinhamento estético que muito lembra os trabalhos de Lemony Snicket. E se com ele, os adultos não passavam de peões na mão das ardilosas e inteligentes crianças, aqui o que Clube Zero prepara é parecido.

Nas salas de aula, herméticas, banhadas pelo sol frio da Europa, os pupilos dividem as conquistas: alguém passou o dia com só uma ervilha no estômago, alguém não tomou nem água, mas eles ainda se veem reféns da alimentação, do grande conglomerado capitalista que instaura, a base de mentiras, a ideia de comer para sobreviver.

Hausner, cineasta de visão particular e cética para os malefícios do mundo no século XXI, mune Wasikowska de comportamentos calmos e calculados. O rosto da mulher estampa as embalagens de um chá para jejum, mas ela nunca o toma. Ela não come, faz parte do Clube Zero, organização quasi-religiosa que não ingere um grão de arroz e está bem da vida.

O elenco é formado por jovens atores, trazendo com precisão o ar apático do roteiro de Hausner e Géraldine Bajard (Foto: Pandora Filmes)

Os alunos, que oscilam os problemas familiares com as dores da adolescência e o descaso imaterial de estudarem no internato mais chique do condado, passeiam pela desnutrição, tanto alimentar quanto da alma. Pela primeira vez em muito tempo, porém, os garotos e garotas estão felizes. Famintos, talvez, mas com certeza mais alegres e dispostos.

O mote de morte aos bilionários e aos afortunados está impregnado em cada virada sutil da câmera, ou comportamento expressado no contraste das famílias ricas, com a mãe pobre. Reparem como, na primeira reunião de responsáveis, a mulher senta-se ao lado do cachorro, e tem no guarda-roupa as peças verde-limão que combinam com o figurino da plebe. 

Hausner ainda experimenta as sensações do som, insistindo em um tambor rítmico e constante, que denota não apenas os corações palpitantes de uma fase de ebulição da vida, mas também o eco de uma realidade utópica e proselitista. Clube Zero abole o alimento da mesma maneira que faz imperar o silêncio, absoluto, controlador. As barrigas não roncam, e tampouco são percebidas. No fim, tudo vira luz: brilhando, parada, presente ali até o anoitecer, quando a escuridão chega e acaba com tudo mais uma vez.

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