Priorizar a forma ao conteúdo não é exatamente algo novo no cinema. Pense em Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (2004), cuja trama escrita por Charlie Kaufman não deixa de ser a reciclagem de vários formatos da comédia romântica; Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância), de 2015, em que Alejandro Iñárritu remonta e satiriza os dramas americanos de atores que “dão a volta por cima”; ou até mesmo o atual Anatomia de uma Queda, de Justine Triet, que subverte os dramas de tribunal.
Zona de Interesse, de Jonathan Glazer, prioriza seu formato para reconstruir a história da opressão nazista. Embora não conte nada necessariamente novo – há algo necessariamente novo para contar? –, cria um campo de observação interessante. Fica claro que o trabalho de Glazer, ao adaptar livremente o romance homônimo de Martin Amis, foi construir uma atmosfera.
Não por acaso, The Zone of Interest (no original) – que venceu o Grande Prêmio no Festival de Cannes – se inicia e termina com o som em fundo preto. O som – que rendeu uma indicação ao Oscar – e a música de Mica Levi nos prepara para a dualidade que o filme retrata: o horror nazista, vivenciado pelos prisioneiros do outro lado do muro, e a felicidade idealizada, “deste lado” do muro, ao som de pássaros e família reunida à beira do rio.
Tenho a impressão de que filmes com o mesmo tema são frequentemente sequestrados por análises vazias sobre a “banalidade do mal”, ainda que seja difícil dissociar esse viés dos filmes do mesmo gênero. E embora esse tipo de compreensão diga mais sobre a força da análise do que sobre a sua “representação” em determinados filmes, poucas cenas indicam que o diretor Jonathan Glazer tenha se esforçado em retratar essa “banalidade” em Zona de Interesse, mesmo afirmando ter lido Hannah Arendt enquanto se debruçava, ao longo de quase 10 anos, na produção do longa.
Muitas cenas sugerem a violência como uma condição aceitável da manutenção de poder, mas Zona de Interesse aponta mais para os efeitos de supressão do que de indiferença em relação a essa violência diária. “Havia a sensação de que nada deveria parar e ninguém deveria parar”, afirma Glazer em entrevista. “Todo mundo tinha que estar ocupado com atividade o tempo todo, porque se você parar, você pensa. E, se você pensa, você reflete“.
Em alguns trechos, cenas em negativo – que num primeiro momento poderiam soar experimentais – mostram uma garota recolhendo vestígios pela madrugada, na “fronteira” entre o espaço “livre” e o campo de concentração. Ela deixa comida para os presos e vasculha o território com uma bicicleta, e a imagem, em tom noir, dificulta que se veja quem realmente é.
Essa diferenciação visual parece indicar uma terceira narrativa dentro da história: enquanto a primeira é aquela que “vemos” (família nazista), e a segunda aquela que “ouvimos” (Auschwitz), essa terceira indica um cenário de resistência, mostrando uma espécie de infiltração “deste lado” do muro. Indica reflexão, algo que nenhum outro personagem faz durante todo o longa, com exceção da sequência final. Zona de Interesse se encerra sem que alguém saiba que a menina esconde comida para os presos lá dentro – ninguém sabe, na verdade, se essa comida de fato chega aos presos.
Nas cenas finais, quando o comandante Rudolf Höss (Christian Friedel) sente ânsia de vômito ao descer as escadas, o tipo de reflexão experienciada pela personagem anônima parecem tomar o corpo do oficial da SS, e os takes de um “presente” onde funcionárias limpam câmaras de gás em Auschwitz mostram de forma alguma uma realidade esquecida, mas lembrada. Agora como um museu, representam o espaço canonizado pelo mal, lembrado pelo ruim, e por isso marcado (curiosamente, também indica o vazio “do bem” – a forma como mesmo as experiências mais devastadoras são minimizadas pelos interesses de mercado: manter o espaço limpo para receber clientes).
Essa sequência final contrasta com o desejo megalomaníaco da supremacia branca, da superioridade baseada no racismo e na opressão, e indica que, no futuro – o “nosso hoje” –, a história punirá os nazistas ao condecorar as vítimas do regime como as verdadeiras heroínas (o museu existe para lembrar esse cenário). É o único momento do filme que o terror muda de lado, e não são os ruídos dos oprimidos que nos aterrorizam, mas o julgamento silencioso do telespectador que aterroriza Rudolf Höss.
Muitos oficiais nazistas, ao tomarem consciência de que a guerra estava perdida, mudaram de nome e de país; ao tentarem o esquecimento, grande parte veio para a América do Sul. Josef Mengele, o médico nazista – amigo do verdadeiro Rudolf – se instalou em Caieiras, na Grande São Paulo, e teve uma vida pacata até sua morte, em 1979, sem ser incomodado pela ditadura militar.
Ainda que o final indique a ânsia do comandante talvez como uma consequência direta de uma contaminação da água (no ínicio do filme, quando ele e os filhos estão pescando, Rudolf sente a água suja com restos humanos e manda os filhos saírem do rio, mas também é ele que puxa o barco com as crianças para a casa, mantendo o corpo em exposição), é também plausível que Rudolf Höss tenha sentido a opressão da esposa.
Momentos antes de descer as escadas, na sua sala, ao ligar para ela e contar sobre seu plano psicopata de matar todos os judeus húngaros em um salão com gás – sabe-se que o verdadeiro comandante realmente concluiu o plano, na operação batizada com seu próprio nome –, ele ouve o desdém de quem precisa dormir. “É meio da noite e tenho que ir para a cama“, diz Hedwig, antes de caminhar lentamente para o quarto. Toda a tensão seguinte sugere que o comandante remói, ao descer as escadas, a facilidade com que sua esposa vive sem ele – o grande oficial nazista, considerado um bom administrador por Heinrich Himmler, na verdade não é nada.
De fato, a personagem de Sandra Hüller é fundamental – talvez até mais importante do que o papel do comandante nazista. Ao dar vida a uma espécie de ideário da classe média alemã – com seus desejos de consumo, sintetizados na cena em que experimenta, na privacidade do quarto, um casaco e o batom apreendidos de uma nova prisioneira de Auschwitz –, Hedwig Höss reproduz a frieza intencional de “não pensar a respeito”. Como o próprio diretor diz, “com Hedwig, não há reflexão, nenhuma consideração por nada ou ninguém, exceto ela mesma. Ela está constantemente e incansavelmente ocupada para não pensar”.
No filme, não há cenas com dramas pesados sobre o sofrimento humano, muito menos longos diálogos que demonstrem a monstruosidade dos nazistas. Contudo, esses elementos são diluídos nas ações diárias dos personagens. “Eu poderia fazer meu marido espalhar suas cinzas nos campos de Babice”, diz Hedwig para a jovem polonesa que serve o café, após descontar sobre ela a culpa pela mãe, Linna (Imogen Kogge), ter ido embora.
O impacto dessa cena, certamente, é a ausência completa de sentimento – da garota, que embora possa internamente ter se chocado, age com naturalidade (provavelmente porque ouve diariamente ameaças do mesmo tom), e de Hedwig Höss, que profere a ameaça enquanto come lentamente o café da manhã. É uma das melhores representações da relação de poder que Hedwig exerce sobre a casa – a “zona de interesse”, como os nazistas batizaram a região da fronteira com Auschwitz.
A ideia do terror à espreita, de um mal maior próximo, parece contundente em todo o filme, mas principalmente na vida das funcionárias polonesas semi-escravizadas que trabalham na casa do comandante de Auschwitz – os únicos oprimidos que definitivamente vemos, mas não ouvimos –, na divisa com o campo de concentração.
Esse mal se espalha, e toma conta de tudo ao redor: a mãe de Hedwig, ao não suportar ver o holocausto em curso e as chamas iluminando seu quarto, foge pela madrugada – talvez pelo cheiro, talvez por um receio de que seja a próxima. O interessante é que Glazer não tenta nos induzir, embora trabalhe com sugestões ao longo de todo o filme.
Talvez o mais interessante no trabalho de Jonathan Glazer seja tratar o telespectador em Zona de Interesse não como um agente passivo, mas como parte fundamental para a realização da história. É provável, na verdade, que muitas pessoas, ao assistirem o filme, esperem algum tipo de confirmação de tudo o que aprenderam sobre o tema. E esse jogo já foi exaustivamente gravado no cinema – A Lista de Schindler (1993), de Spielberg, ou A Vida é Bela (1997), de Benigni, para citar apenas alguns exemplos –, mas não é o que Glazer oferece.
Como espectadores silenciosos, nunca vemos as atrocidades além do muro, mas ouvimos ordens seguidas de gritos de dor, ecos de tiros abafados, o som do fogo, gritos de crianças e, eventualmente, vemos pessoas tossir pela casa. Mas o horror não é necessariamente imaginado – é sabido. Todos sabemos o que aconteceu, todos vemos fotos, vídeos, ouvimos discursos – conhecemos a história.
Esse pano de fundo faz com que o filme seja autoconsciente, e por isso evite os retratos caricatos sobre o drama humano (como em filmes anteriores de mesmo gênero, que definem o holocausto nazista como o grande drama sem precedentes, ao mesmo tempo em que reduzem seus diálogos em dramas bastante inteligíveis). Ainda que Zona de Interesse seja um filme sobre o holocausto nazista lançado em 2024, evita o anacronismo ao focar, de forma consciente, no nosso presente, repleto de violência sublimada.
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