Paul Atreides (Timothée Chalamet) caminha pelo deserto, seguido por uma multidão de guerreiros mascarados. Eles se escondem de uma ameaça invisível. O céu é devorado por um laranja sangrento, que identifica a noite no planeta desértico. Cada movimento, passo ou respiração é calculado para fazer o mínimo de barulho e, quando chegar a hora do ataque, o máximo de impacto.
Calmo, pensativo e planejado: é assim que o protagonista-bíblico de Duna: Parte Dois é reintroduzido à audiência que o viu partir junto de Chani (Zendaya) para dentro das dunas que compõem a paisagem de Arrakis. Muito mudou dentro do jovem: agora um homem adulto na integridade, ele é curioso com o destino que deseja seguir e, mais perigoso ainda, se está disposto a traçar o caminho que os outros esperam dele.
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Na dita conclusão de sua duologia, o diretor Denis Villeneuve aposta alto. De primeira, ele troca as lentes comuns pelo colosso do IMAX, abrindo os horizontes para um banquete visual e sensorial além da compreensão de quem assiste. Desta vez, o som estoura nos alto-falantes, enquanto a tela é violentada por ângulos obtusos, soluções criativas de design e criação, e um tato pela materialização do divino entre um mundo de homens e mulheres comuns.
Isso pois aqui o canadense adapta a segunda metade (ou o último terço) do romance de Frank Herbert, uma porção do livro que investe na jornada emocional de Paul e usa o tempo como remédio e veneno para as ações que finalizam Duna como a primeira investida em uma longa saga literária. Villeneuve abdica da questão temporal e se desdobra na criação de um protagonista falho, mas que não perde tempo quando tem a chance de ascender.
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As profecias, os títulos e as superstições estão na alma do filme, e encontram em Stilgar (Javier Bardem) o veículo para que o fanatismo e o temido fundamentalismo tomem parte e ganhem o foco que lhe é de direito e de temor. Para o guerreiro Fremen, Paul é Lisan al Gaib, o Messias pregado pela ordem de Bene Gesserit, e o responsável por, vindo do Novo Mundo, unir os nativos de Arrakis e livrá-los do controle do Imperador.
O que se coloca no caminho do diretor, que aqui assina o roteiro apenas ao lado de Jon Spaihts, é a maneira como ele enxerga a arte de contar histórias. Para além das aspas polêmicas que tomaram a mídia na última semana, Villeneuve se corrompe, sobretudo, na intensidade que dedica a cada engrenagem e mecanismo de sua produção. E não é novidade para ninguém que os melhores trabalhos de sua filmografia são aqueles onde o íntimo vai de encontro com o desconforto.
Seja no thriller desgastante que ele orquestra em Os Suspeitos, seja na catarse emocional e parasitária de A Chegada, ou mesmo na inquietude que intoxica a fronteira mexicana em Sicario, Denis Villeneuve tem em seu favor o controle: de tempo, de reação, de indução e, o que sobra em Duna, de clímax. Tratando-se da parte final do livro, os acontecimentos aqui se embrenham em sequências de muito calor, volume e ápices.
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Uma cena de ação é seguida de outra, e depois mais uma e então longos momentos de contemplação, sonhos febris e a profecia martelando na alma de Paul. Fica até indistinguível analisar como cada momento impacta no arco do herói, já que sua chegada ao lar dos Fremen é logo suprimida pelo carinho ganho, pela crença e depois pelo perigo, pela fé, pelos treinamento e, então, pelo confronto final.
As duas horas e quarenta e seis minutos justificam uma epopeia de níveis cataclísmicos (próximo, talvez, ao que O Senhor dos Anéis representou no gênero da fantasia). Peter Jackson, por outro lado, nunca escondeu o projeto de trilogia da obra de Tolkien, e deu tudo de si na reconstrução da Terra-Média, sem poupar nas megalomanias do autor. Villeneuve, em contraste, produz seus Dunas quase como filmes-surpresa, sem a confirmação de que, desde o princípio, os planos eram de transformar dois livros de Herbert em histórias de Cinema.
E se o longa de 2021 demorava a terminar, e quando acabava ficava a sensação de um alongamento anticlimático, o que ele faz em 2024 é passear com as expectativas da audiência. Na ausência de uma finalização bruta, o roteiro apenas passa o bastão para o inevitável terceiro capítulo, desta vez baseando-se em Messias de Duna, um livro muitíssimo menor que o anterior.
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Em Duna: Parte Dois, a linguagem de lentidão e latência, já muito extravasada em Blade Runner 2049, ganha contornos de gênero e abre um oceano de possibilidades para os profissionais que acompanham a direção. No departamento sonoro, o filme grita, se contorce, arranha, grunhe e engasga. Na cena em que Paul doma o verme de areia, os efeitos recorrem a uma espécie de chiado plástico, tátil e assustador.
Do horror, o diretor empresta o design da Voz, usada especialmente pela sempre fenomenal Rebecca Ferguson na pele de Lady Jessica, uma personagem que passa por poucas e boas e enfim assume seu lugar de destaque no panteão da mitologia. Em momentos de escuridão e devaneios, sua performance assume tons pitorescos e demoníacos, assustando o filho e a audiência.
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Do time que fez a limpa no Oscar 2022, a trilha sonora de Hans Zimmer alcança novos picos, com faixas criativas e distintas. Na fotografia, Greig Fraser se vira nos 30 para diversificar esteticamente o primeiro do segundo filme, e não apenas repetir o trabalho de classe que executou antes. Dessa manobra, ele consegue brincar com o eclipse no planeta que não anoitece, optando por cores avermelhadas, além de uma câmera enevoada quando captura os Sóis escaldantes da história.
Nas cenas focadas no Imperador e em sua filha, a direção de fotografia se aproveita da natureza e do cinza-chumbo e branco-creme que a Princesa Irulan (Florence Pugh) veste de forma régia. Christopher Walken vive um governante cansado e fleumático, mas recebe pouco em níveis de amplitude dramática. Léa Seydoux surge como outra Bene Gesserit, mas seu papel parece fadado a ser melhor desenvolvido no futuro (como ocorrido com Zendaya, e suas aparições relâmpagos no filme anterior).
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O show à parte no trabalho de Fraser vive no preto e branco que abstrai os Harkonnen de qualquer resquício de vida ou vitalidade. No covil do Barão (Stellan Skarsgård), corredores negros se misturam ao lodo usado nos banhos purificadores. O bestial Rabban (Dave Bautista) fica pequenino na presença do irmão caçula Feyd-Rautha (Austin Butler, com direito a beijo roubado), de longe a adição mais chamativa ao elenco.
O ator, que usou uma peruca-careca que ia da nuca até as pálpebras, exorciza o Elvis de seu organismo, interpretando um guerreiro mortal e animalesco. Ele emula a rouquidão que Skarsgård criou para a linhagem familiar, mas se diverge do tio na maneira que olha para cada pessoa ao seu redor; com lentes canibais, enxergando não só servos e aliados, e sim carne fresca com sangue de sobra para saciar uma gastura infinita.
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Joe Walker precisa montar essa história de grau gigantesco com mais obstáculos que no trabalho anterior. Aqui, ele lida com a (breve) passagem do tempo, os diferentes espaços geográficos e as distintas linguagens visuais. Por isso, o resultado final é mais truncado que o desejado, com longas porções de narrativa sendo ou ditas em diário por Pugh, ou agrupadas a fim de dinamizar a história. Problema esse também enfrentado por David Lynch no filme de 1984.
A verdade é que Frank Herbert escreveu Duna com a pulga do lado da orelha, sussurrando soluções. As descrições, os relatos, o mundo e o vocábulo foram feitos de forma a dificultar uma adaptação convencional. A leitura demora a fluir, e ganha corpo justamente na ideia de que a jornada é mais importante que o destino. Quando entendemos a dinâmica nebulosa e os anos que voam em questão de parágrafos, é aí que o romance sai vitorioso.
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Os filmes, entretanto, organizam o caos e dão sentido ao onírico. Paul sonhava com Chani, que vira sua companheira e depois sua amante foragida. Agora, ele enxerga Alia (Anya Taylor-Joy, piscou-perdeu), a irmã mais nova que se recusa a nascer e só fala com Jessica por meio do ventre. Mais uma vez, Villeneuve abdica do original para dar voz a sua própria interpretação, louvável em teoria, mas um tanto infrutífera na prática.
O que floresce na atuação de Chalamet provém de uma conexão genuína com o cineasta, que abre espaço para uma performance de abalos sísmicos e transformação interior. O líder recluso veste a carapuça de Messias prometido, engrossando o tom, expelindo raiva dos olhos azuis da especiaria. O ator, que coleciona louros do cinema romântico até a fantasia doce, dá um passo vigoroso na celebração de um anti-herói de genuíno caráter dúbio.
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Paul Atreides sai vitorioso na Guerra, mas paga custos demasiado altos. Sem Chani, ele passará por uma vacância não apenas a nível humano e amoroso, mas também na classe militar. Desta vez, Zendaya demanda a atenção com o olhar, e guarda nas expressões faciais o descontentamento e o remorso que nascem à medida que Muad’Dib cresce dentro do peito do amado.
Na imensidão do deserto, os corpos se misturam e não distinguimos Paul, Chani, Stilgar ou Lady Jessica. Denis Villeneuve faz de sua Duna um retrato distante de fé, corrupção, poder e controle. Para ele, não importa quem brande a lâmina, quem bebe a Água da Vida ou mesmo quem é a atriz famosa que aparece em flashes nos sonhos de Chalamet: o destino do povo amedrontado pela crença cega na salvação divina está traçado, selado e, provavelmente, será desagradável de acompanhar.
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