Quinta é dia de feira #01

Comecemos com um clássico: um pouco sobre Terra em Transe, de Glauber Rocha

min de leitura

Terra em Transe sou eu, Glauber Rocha, 28 anos, brasileiro, possivelmente vítima de algumas doenças físicas e mentais contraídas em nossa fauna e flora.”

Escreveu um, filmou outro e montou um terceiro. Foi assim que, segundo o ator Paulo Autran, Glauber Rocha preparou sua obra-prima. Dono do lema “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, Glauber já era conhecido pelo posicionamento contraditório, pela mente revolucionária e pela personalidade polêmica. No entanto, quando apresentou Terra em Transe ao mundo, a reação foi imediata e incendiária, desagradando militares, militantes e elevando o status do jovem diretor, que morreu precocemente aos 42 anos. Afinal, a política e a poesia são demais para um só homem.

Terra em Transe começou a ser rascunhado ainda em 1965, um ano depois que a escória militar derrubou Jango do poder – foram quase 700 páginas de roteiro e cinco semanas de filmagens para atingir aquele devaneio febril que fez sua estreia em 19 de maio de 1967, bem no início do governo ditatorial de Costa e Silva. O esforço para passar às telas o espírito inconsolável dos intelectuais que assistiram, imóveis e resignados, à deflagração do golpe trouxe ao cineasta baiano a consagração absoluta ainda em seu terceiro filme, que levou para casa o prêmio FIPRESCI, concedido pela Federação Internacional de Críticos de Cinema, no Festival de Cannes daquele mesmo ano. 

Através de uma fictícia Eldorado, Glauber Rocha dissolve qualquer tipo de linearidade em sua narrativa para embarcar nos delírios do jornalista e poeta Paulo Martins, interpretado por Jardel Filho em uma performance calorosa o suficiente para criar um protagonista apocalíptico e convulsivo. Entre lutas e vazios, Paulo é parte ativa do jogo político, movimentando as massas a favor dos candidatos que acolhe enquanto busca a opção que melhor se alinha a sua intelectualidade burguesa. “Engraçado, eu? Eu sou um trágico!”

Glauber até reutiliza o nome do antigo ditador mexicano para criar Porfírio Diaz, interpretado por Paulo Autran. O senador direitista responsável pelo golpe de Estado não só finaliza como também inicia a obra, garantindo sua essência cíclica e descontinuada. Para além de dialogar com um Brasil perdido entre utopias e castigado pela criminosa Constituição de 1967 – a quarta Carta Magna do país –, Terra em Transe se aproxima diretamente do sonho latinoamericano que foi esmagado pelas imperialistas botas de chumbo, se utilizando de um olhar que só é possível enquanto condição de nação subdesenvolvida. 

 Espelhando o desiludido Paulo, ainda convulsionamos no meio dos estilhaços desse Brasil supostamente democrático que renderia boas reflexões nas mãos de um Glauber de 85 anos, idade que completaria em 2024. Mais de 55 anos depois, Terra em Transe se torna quase profético frente aos delírios golpistas de uma direita histérica que teima em espalhar mentiras e eleger lunáticos. Mas não se engane: mais fortes (ainda) são os poderes do povo.

Em memória de Santo Dias, operário assassinado pela ditadura militar brasileira em 1979, durante uma greve na zona sul de São Paulo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *