O frenesi causado pelo “surgimento” da Princesa Diana só foi ultrapassado no dia de sua morte. É lógico, portanto, o movimento narrativo que o criador Peter Morgan executa na sexta e última temporada de The Crown: ele adia o inevitável ao máximo. A estratégia não escondeu as cartas, já que os dez capítulos chegaram à prestação, em grupos de quatro e seis.
A primeira parte, focada nos momentos derradeiros da personagem de Elizabeth Debicki, rimam tematicamente com a danosa temporada anterior, alvo de críticas justamente pelo passo lento que caminhava a narrativa, antítese do modus operandi da produção, que nunca poupou a passagem do tempo.
O auge artístico, alcançado na temporada 4 (que acumulou louros por parte do público e da indústria, em uma varredura histórica no Emmy), já era tido como o ponto mais alto que a série da Netflix iria e poderia alcançar. Era o momento que Charles (e o restante do mundo) caía de amores por Lady Di, ao mesmo tempo em que o país enxergava na Dama de Ferro uma figura antagônica à rainha Elizabeth.
Todos os astros se alinharam, resultando num esforço dramático louvável por parte da equipe, completamente empenhada na extração do suco novelesco que sempre atraiu a audiência de The Crown, uma série que teve seu pontapé nos anos 50 e foi se modernizando à medida que o Reino Unido deixava de lado a celebração a esmo e começava a questionar o papel dos monarcas.
Tema sublinhado ano após ano, com o epicentro caindo no colo de uma compassiva e austera Rainha, a quem Imelda Staunton transporta a territórios desconhecidos na leva final. Agora, é hora de lidar com os efeitos, fantasmas e bombas após a morte de Diana, ao lado do namorado Dodi (Khalid Abdalla), e as acusações que não sossegam na língua de Mohamed Al Fayed (Salim Daw), pai do moço e sogro da Princesa.
Por isso, os episódios que abrem o ano final destoam da mensagem que Morgan orquestra nas entrelinhas. Charles (Dominic West) recebe muito para interpretar e externalizar, normalmente em caretas malfeitoras, outra marca registrada do personagem, que coloca seus intérpretes em mímicas faciais que contorcem os lábios, as bochechas e até a testa. É uma chupada de limão que abre vazão para a dramaticidade de um homem desgostado pelo seu povo e pela sua família.
Ciente do status do Príncipe de Gales, o foco involuntariamente se vira para o jovem William (Ed McVey), o farol de carisma e popularidade que a Realeza ordenhou até que sua aparência assumiu tons charleianos e o irmão Harry tomou o posto de badboy simpático. Na série, os filhos de Diana são atravessados por sua morte em anos de exímia importância de desenvolvimento pessoal. O mais velho desemboca na faculdade, na mira de Kate Middleton (papel da irresistível e muito centrada Meg Bellamy).
O caçula, distante do irmão, entra na farra. Sem pudores na retratação da adolescência de imprudências e vícios, The Crown acaba patinando entre os mundos em constraste dos reais: se por um lado mantém-se o tom íntegro e posturado de Elizabeth e do Príncipe Philip (Jonathan Pryce), existe também um rompimento temático e visual que acompanha a juventude imprudente e sedenta de William e Harry (Luther Ford).
Nunca encontrando o tom ideal para a divisão de passado e presente, Peter Morgan assume certa desconfiança no que o papel da Rainha e de sua corte presta em contas para o Estado e para a população. Em Ruritania, a característica relação entre a senhora e o Primeiro-Ministro, Tony Blair (Bertie Carvel), esboça uma rivalidade que foge do alcance de Elizabeth.
Entrando também nos acontecimentos mundiais dos anos 2000, do Ataque às Torres Gêmeas até a Guerra do Iraque, o roteiro inicia a absolvição das peças de maior influência. William é capturado por lentes de gentileza e compreensão, enquanto Elizabeth encara passiva sua mortalidade, primeiro nas minutas que regem o governo, e depois na iminente sucessão.
As filmagens da temporada final foram interrompidas pelo falecimento da Rainha, em setembro de 2022. Fica uma curiosidade a respeito do quanto o mundo real influenciou na ficção, já que Sleep, Dearie, Sleep, que se passa vinte anos no passado, parece se conectar perfeitamente aos tempos de hoje.
É justamente nessa vertente de questionamento e legado que Staunton brilha e sobressai o esperado pelas atrizes anteriores. Após as mortes de Margaret (Lesley Manville) e da Rainha-Mãe (Marcia Warren), Elizabeth demora a reencontrar seu eixo. O Jubileu de Ouro, data em que comemorou 50 anos no Trono, acontece sob turbulência e sentimentos há muito adormecidos pela mulher.
Ao lado de Margaret, ela se lembra de uma noite marcante no bar Ritz: o fim da Guerra e uma comemoração que surrupiou a então princesa das garras da futura governante. Em rápidos vislumbres, apresentados à sombra da melancolia da vindoura morte da irmã, assistimos Elizabeth Windsor viver a alegria e a jovialidade que lhe foram negadas e assassinadas.
Agora, sem a irmã ou a mãe, não resta muito entre os passos presentes e a caminhada até o túmulo. É Phillip quem engatilha essa emoção nela, com Pryce em uma versão cáustica e impaciente do marido, interessado no planejamento do próprio funeral. A melosidade e a melodia do fim do ciclo de submissão e servidão chegam com visitas do passado.
Olivia Colman e Claire Foy voltam à cena para colocar juízo na cabeça de Imelda Staunton, que considera abdicar em favor de Charles, recém-casado com Camilla (Olivia Williams), um sonho que perdurou anos de amargura e clemência, finalizado com a mesma consternação. A entrada oficial da mulher na família real não apenas demarcava um novo passo na História, como também enterrava mais fundo o caixão de Diana.
Na dicotomia do analógico e do digital que imperou nos anos obcecados pela prole da Princesa, The Crown assume o característico posto de indecisão. Afinal, qual o papel da Monarquia no século XXI? E se a questão já era exaustiva nos tempos em que Colman e Emma Corrin davam vida ao texto, imagine agora, com o advento da tecnologia se infiltrando no palácio.
Os prometidos vinte anos de separação entre a ficção e a realidade finalizam The Crown com certo coitadismo e um bocado de compaixão. Polêmicas de um Harry nazista são abafadas pela solidão da velhice, assim como o nascimento de um romance tão arrebatador e fosforescente, montado sob as preferências de uma mãe (a sublime Eve Best) disposta a ver o sucesso da filha.
Os números 1 da família, Elizabeth, Charles e William, são amparados e medicados para o mal da incerteza, da cobrança e do dever. Os números 2, Harry, Margaret e qualquer um à sombra dos herdeiros, recebem o receituário tarde demais. O vício já está impregnado, assim como a raiva dormente, e um eventual escândalo real. No fim, Peter Morgan fecha o circo com a lona entreaberta, capturando com curiosidade o tamanho do interesse de quem assiste.
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