A cidade de Lawford, New Hampshire, é tão pacata que o policial local faz bico de limpador da neve que atola as estradas e congela os poucos moradores, todos velhos conhecidos. O oficial Wade (Nick Nolte) atravessa o cotidiano com cara de poucos amigos e mínima disposição, entortando o caneco para aquecer o próprio corpo e a antiga vontade de viver.
Em Temporada de Caça (Affliction), o diretor e roteirista Paul Schrader habita a pequena cidade ao mesmo tempo em que o protagonista enfrenta um espiral de culpa e raiva, os ingredientes mais perigosos quando o assunto é uma possível conspiração criminosa e a morte de um figurão político do local.

Lançado no Festival de Veneza em 1997 e expandido para o circuito americano apenas no final do ano seguinte, o filme concorreu em duas categorias do Oscar 1999, Ator para Nolte e Ator Coadjuvante para o veterano James Coburn, intérprete do pai de Wade que saiu vitorioso da cerimônia. Esta que, vale notar, contou com a presença de Central do Brasil e Fernanda Montenegro.
E não foi apenas o nosso país que saiu desgostoso com a vitória do italiano A Vida É Bela, que também surrupiou o prêmio de Ator de Nick Nolte, que em Affliction aumenta a aposta no que diz respeito ao brucutu traumatizado que, na mimese de seu passado, continua a linha de produção de escárnio e machismo. Sua derrota para o sempre caricato e nunca merecedor Roberto Benigni é daqueles erros imperdoáveis da Academia.

James Coburn encarna com malícia o papel de Glen Whitehouse, um alcoólatra agressivo que mal repara na esposa morta no andar de cima – a culpa, óbvio, é de sua sovina atitude ao não ligar o aquecedor no inverno cortante do local. No funeral da idosa, os filhos se reúnem a contragosto.
Para a religiosa irmã, Wade demonstra indiferença, e é o caçula Rolfe (Willem Dafoe) o receptor das preocupações e do afeto do primogênito, a quem protegeu na violenta infância e de quem se afastou, buscando não compartilhar o veneno que o pai transmitiu em demasia. Dafoe narra Affliction com dureza na voz, tirando do livro original de Russell Banks a essência tesa de que, naquele lugar, os que ficaram para trás não têm chance nenhuma de liberdade.

Wade alimenta inveja da ex-esposa e arrependimento da pequena filha, com quem não se conecta de modo algum. Nem o namoro com Margie (Sissy Spacek) sossega o leão que dorme inquieto no interior de uma pessoa profundamente fechada. A presença do pai, em teor monstruoso de Coburn, reacende no filho os mecanismos de defesa que há muito serviram como meio de sobreviver.
O embate, intelectual e físico, é brutal na teoria e trágico na prática. A própria escalação de Coburn deveu-se ao porte do ator, que consegue intimidar uma figura tão imponente quanto a de Nolte. Quando sugeriu o papel ao veterano, o diretor pediu que ele buscasse em si as cicatrizes e as labaredas. Bem-humorado, Coburn definiu: “então você quer que eu atue? Claro! Faz tempo que não faço isso”.

Os esforços foram mais do que positivos, como a vitória no Oscar de Melhor Ator Coadjuvante comprova. Para tal, Coburn interrompeu a aposentadoria e foi passar frio no Canadá, onde as gravações aconteceram; faleceu menos de cinco anos depois, vítima de um infarto, e deixou um legado imensurável. Melhor ainda, surpreendeu a audiência da premiação, já que não ganhou nada antes do prêmio máximo.
O Globo de Ouro ignorou a performance, enquanto o Sindicato dos Atores e o Spirit Awards apenas indicaram-no. Chega a noite do Oscar 1999 e, derrotando o que parecia um triunfo de Ed Harris (O Show de Truman), Robert DuVall (A Qualquer Preço) ou a varredura de Shakespeare Apaixonado com Geoffrey Rush, Affliction confirmou o status de lenda do ator. Nolte, indicado antes por O Príncipe das Marés e depois por Guerreiro, nunca venceu.
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