Adolescência vasculha a herança dos homens

Assunto do momento, minissérie causa desconforto em quem assiste e aciona gatilhos ocultos

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Inúmeros são os textos, análises, debates e questionamentos inflamados pelo lançamento de Adolescência, produção inglesa comprada e distribuída pela Netflix a nível mundial. A história, construída ao longo de quatro episódios filmados em plano-sequência, é a do jovem Jamie Miller (Owen Cooper), acusado de assassinar uma colega de classe.

A abordagem clínica e frontal do drama criminal chama atenção primeiro pela forma, e a escolha do diretor Philip Barantini e do diretor de fotografia Matthew Lewis coreografar um balé nos bastidores, ao modo teatral. Cada capítulo, de média uma hora de duração, é gravado sem cortes ou pausas.

Owen Cooper poderá ser visto em O Morro dos Ventos Uivantes, novo filme da diretora Emerald Fennell (Foto: Netflix)

Para alcançar o objetivo, cada episódio ganhou três semanas de produção, começando com a leitura do roteiro e a demarcação temporal e geográfica, seguida pelos ensaios e depois a gravação. O terceiro foi realizado apenas na segunda tomada do primeiro dia, enquanto os demais só terminaram no quinto e último dia no set.

Controle e precisão eram os preceitos básicos de Adolescência, que ganha roteiro e criação de Jack Thorne e Stephen Graham. O primeiro é pau para toda obra no Reino Unido, tendo assinado trabalhos que vão do juvenil, como a saga Enola Holmes, o revival de Harry Potter e a Criança Amaldiçoada, e alguns episódios das temporadas prematuras de Skins. O segundo é o ator que vive o pai do pequeno Jamie, Eddie, e financia a minissérie ao lado da esposa, por meio da produtora que fundaram há pouco.

A ideia de filmar sem cortes e capturar o tempo real em tela não é novidade para o diretor Philip Barantini, que comandou o filme Boiling Point, ao lado de Graham (Foto: Netflix)

Temas que vão da misoginia a abuso do uso das redes sociais, além da denúncia do funcionamento do algoritmo, reação dos pais aos gostos dos filhos e a difusão de preconceito disfarçado de opinião são explorados no roteiro, que segmenta sua narrativa em quatro direções divergentes. O primeiro episódio acompanha a prisão e questionamentos iniciais, com a estranheza tomando conta do ambiente.

Como um menino de 13 anos seria capaz de ato hediondo como esse? A resposta está na sequência, que leva os policiais Bascombe (Ashley Walters) e Frank (Faye Marsay) ao colégio. Este é o mais desafiador no que tange a sequência sem cortes, com uso de um drone que levou a câmera do pátio até a cena do crime, depois de uma perseguição longa e estafante.

A canção entoada ao final do segundo episódio foi cantada pela atriz que interpreta a vítima, Katie Leonard (Foto: Netflix)

O truque de produção, que chega primeiro para impressionar quem assiste e depois para prender a audiência na pele dos personagens, torna-se cansativo no terceiro episódio, quando Jamie é entrevistado pela psicóloga Briony Ariston (Erin Doherty, de The Crown). Primeira vez do ator estreante em um estúdio de gravações, o capítulo apresenta a câmera oscilante na conversa dos dois, mas joga seguro na dramaticidade.

Em interpretação calculada para assustar nos momentos corretos, Cooper chamou atenção da mídia, que adora uma estrela em ascensão; melhor ainda se está em papel de vilão ou monstro. Acontece que, no plano de potencializar a crueza de Adolescência, a câmera ligada desmonta o potencial da montagem – algo que, por exemplo, The Pitt domina na mesma chave de imagens em tempo “real”.

O roteiro usa de casos reais de violência no Reino Unido para criar a trama fictícia de Jaime, e a equipe precisou de truques para as diversas tomadas, como portas fáceis de serem quebradas e tinta lavável (Foto: Netflix)

Quando voltamos ao lar da família, no quarto e último episódio, Adolescência finaliza um discurso que gera mais debates fora de sua duração do que dentro dela. Os Miller, afetados pelo crime e prisão do filho, investigam os vestígios da violência e do terror causado por alguém que criaram. Não encontram, para o azar de Eddie, da esposa Manda (Christine Tremarco) e da filha Lisa (Amelie Pease, também em sua estreia).

O X, nunca encontrado, marca o lugar do tesouro e da herança masculina que, passada de geração em geração, criando pelotões de jovens desacreditados e inconsequentes. Nas redes sociais, pesquisas apontam para a metralhadora de violência, misoginia e ódio às mulheres entregue para os usuários, em idade formativa de suas opiniões e caráter.

Adolescence pode seguir o caminho de Bebê Rena e dominar as premiações no nicho das séries limitadas (Foto: Netflix)

Como toda produção “incomum” que acaba dando sopa na Netflix, a minissérie teve seu alcance elevado à milésima potência – caso de Bebê Rena no ano passado. Mas Adolescência não é tão diferente das produções britânicas de menor audiência, ou mesmo de obras americanas ou canadenses, tão ou mais incisivas em sua visão do que há na exploração de um passado violento, como Mass e Red Rooms. Diferente mesmo é sua visibilidade e, como tudo que o streaming vende para os assinantes, a eventual canibalização ao redor de seus temas. 

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