“Por um nariz”, anunciou Denzel Washington ao abrir o envelope que continha o nome da Melhor Atriz do Oscar 2003. A frase se eternizou na mitologia da premiação, que consagrou Nicole Kidman e sua performance como Virginia Woolf em As Horas. Sob direção de Stephen Daldry, o drama uniu três estrelas e causou uma avalanche de polêmicas nos bastidores.
Entre a infame prótese que decorou o belo rosto de Kidman, As Horas ficou marcado pela disputa de egos dos produtores Scott Rudin e Harvey Weinstein. O primeiro era a favor do nariz, enquanto o segundo bateu o pé e negou. A figurinista Ann Roth, que sugeriu o uso da maquiagem, se assustou com o nível caloroso das discussões.
No fim, Kidman até gostou do disfarce, já que as gravações aconteciam em simultâneo ao midiático divórcio com Tom Cruise, deixando-a invisível para bater perna sem o apavoro de câmeras e cliques. Mas As Horas é um filme especial demais para ser definido por uma característica da equipe técnica.
Antes de ser um longa-metragem aclamado, o projeto nasceu como livro. O autor é Michael Cunningham, que entrelaça a história de três mulheres, em momentos distintos em tempo e espaço, mas unidas por Mrs. Dalloway. A primeira delas é a própria Woolf, atormentada em um casamento que a privou de aproveitar as belezas da vida. Ela passa os dias na cama, fuma como chaminé e teima em escrever o romance.
Na década de 1950, a dona de casa Laura Brown (Julianne Moore) compartilha do estado depressivo e exausto de Woolf. Um marido ausente é acompanhado por um filho pequeno que sonha com o amor da mãe, mas não encontra vestígio algum. Enquanto lê o livro, Moore personifica os trejeitos da protagonista, em constante busca de um escape.
Já nos anos 2000, período contemporâneo ao lançamento do filme, a agente literária Clarissa Vaughan (Meryl Streep) precisa organizar uma festa em comemoração à carreira de seu cliente, o enfermo Richard Brown (Ed Harris). Batizada como a Clarissa de Virginia, Streep começa o filme com um largo buquê de flores, que a afastam física e emocionalmente da companheira Sally (Allison Janney).
Daldry, de O Leitor e Billy Elliot, dirige com requinte seu drama britânico, e sob o roteiro de David Hare, vai amarrando os temas com os acontecimentos rotineiros. A solidão e a desesperança feminina são motores para a história, que visita três lares disfuncionais. Não é surpresa, portanto, que a Academia do Oscar adorou apreciar cada fungada, grito e suspiro de suas divas – no total, foram 9 indicações: Filme, Direção, Atriz, Ator Coadjuvante, Atriz Coadjuvante, Roteiro Adaptado, Figurino, Montagem e Trilha Sonora.
Porém, ficou claro que o modelo de campanha de Weinstein, que em 2003 colocou 3 entre os 5 indicados ao páreo de Melhor Filme, já encontrava certo desgaste. As entrevistas e aparições públicas focadas no nariz e no desacordo entre os produtores não ajudaram. Na noite de 23 de março, Nicole Kidman venceu sua primeira e única estatueta, no que foi o triunfo solitário do filme.
Streep, que começou a temporada nas apostas de Atriz Principal, foi jogada para Coadjuvante, onde acabou sendo indicada, mas não por As Horas. No mesmo ano, ela emplacou Adaptação(e quebrou o recorde de pessoa mais indicada na história). Moore seguiu trajeto parecido: por The Hours, ela conseguiu a menção em Coadjuvante, enquanto seu papel protagonista de Longe do Paraíso, outra dona de casa dos anos 50, colocou-a em combate direto à Kidman.
O filme também foi notoriamente desqualificado da categoria de Maquiagem, já que foram usados efeitos visuais no tratamento final das filmagens, com o intuito de apagar as fissuras da prótese e deixar mais “limpa” a imagem de Kidman caracterizada. Brando e compassivo, o filme causou um rebuliço na audiência acostumada à beleza tradicional das estrelas de Cinema, em um movimento que gerou outros exemplos futuros, como Charlize Theron em Monster.
Àquela altura, Nicole já havia sido indicada no ano anterior, pelo trabalho em Moulin Rouge!. Depois de As Horas, ela apareceu mais algumas vezes no Oscar: por Reencontrando a Felicidade e Apresentando os Ricardos em Principal, e por Lion em Coadjuvante. No discurso de 2003, ela agradeceu Denzel com um selinho e desatou a se emocionar, virando de costas para recuperar o fôlego e ter a chance de citar os colegas e amigos, condenar a Guerra no Iraque e demonstrar o amor pela mãe e pela filha.
Outro asterisco em sua vitória, porém, está no tempo de tela.E issomuito antes do discurso que criticou a presença de Olivia Colman como Melhor Atriz em A Favorita, outro longa que usa três mulheres no enlace emocional de uma delas. Em As Horas, Kidman acumula 28 minutos, enquanto Streep aparece por 42 e Moore por 33. Inegável, contudo, é o peso de sua participação, a figura na história. Sem Woolf, não haveria Dalloway, e sem Dalloway, não haveria filme.
Deixe um comentário