The Last of Us – 2×03 | Mentira tem perna curta

Dando início ao grande arco da temporada, O Caminho escancara uma Jackson abatida, em que a principal arma contra o trauma é a negação

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Diante dos portões de Jackson, queimam pilhas e pilhas de corpos humanos e infectados. No entanto, é a imagem de um relógio quebrado, preso a um pulso ensanguentado, que puxa nosso olhar. Do escopo íntimo ao comunitário, ninguém passou ileso da tragédia do episódio anterior. Mas antes, um tributo. Tommy (Gabriel Luna), desolado, senta ao lado do falecido irmão e limpa seus braços com um pano umedecido. “Mande à Sarah meu amor”, é só o que consegue dizer. Um último lembrete do passado platônico dessa família, antes que The Last of Us embarque de cabeça na jornada de violência e autodestruição que está por vir.

O Caminho, terceiro episódio da 2ª temporada da adaptação da HBO, é um capítulo de transição. O trecho adaptado aqui representa cerca de 15 minutos de gameplay no jogo, e a maior parte das cenas — tal qual o primeiro — são únicas para a série. Se em The Last of Us Parte II, Ellie (Bella Ramsey) sai em viagem menos de dois dias depois da morte de Joel (Pedro Pascal), o roteiro de Craig Mazin define um longo intervalo de três meses. Por um lado, essa escolha apaga o senso de urgência da história. Por outro, esse momento de respiro é o que nos permite, enquanto público, olhar atentamente para esses personagens e compreender como um evento tão traumático afetou o universo interno de cada um.

“Algumas pessoas só não têm salvação” (Foto: Liane Hentscher/HBO)

Tommy, que nesta variação não esteve presente no incidente do chalé, tem a primeira oportunidade de prestar condolências a Joel. Sua distância da agressiva investida de Abby (Kaitlyn Dever) também o manteve emocionalmente distante do ódio e ressentimento que, pregressamente, compartilhava com Ellie. Com um filho para cuidar e assumindo a tutela da garota, o personagem toma uma posição racional e ponderada, convencendo-a a acionar o Conselho da cidade antes de dar qualquer passo leviano.

Como este Tommy não conhece o rosto de seus alvos, a expectativa é que ele parta para Seattle com atraso, visando salvar Ellie do perigo iminente. Entretanto, há uma verdade que ele esconde de todos — e talvez dele mesmo. Seu semblante indignado, iluminado pela luz vermelha das chamas no necrotério, ou seu olhar desiludido quando todos os seus colegas do Conselho votam contra a convocação de um grupo para caçar Abby, não mentem. Tommy guarda, atrás de tanta sensatez, uma raiva atroz prestes a explodir.

O fio condutor do episódio, dirigido por Peter Hoar (It’s a Sin, The Umbrella Academy), é o luto e como cada personagem, à sua maneira, aprende a viver com ele. Em um mundo em que ser vulnerável pode custar sua vida, estas pessoas entenderam que o melhor a se fazer é mascarar a dor para si e para os outros. Mas as memórias os perseguem tal qual um encosto. Não importa o quanto se iludam, um fogo ardente cresce dentro deles e ninguém mais poderá fugir.

Durante os três meses em que Ellie esteve internada, Dina manteve em segredo todas as informações que tinha sobre Abby e seu grupo (Foto: Liane Hentscher/HBO)

Ellie é quem melhor encapsula esse conflito. Nosso primeiro contato com ela acontece no hospital, logo após a execução de Joel, envolvida em ataduras e conectada por tubos. Mas nenhum esforço dos médicos lhe dá conforto. A série obriga ela e nós mesmos a reviver o trauma — um sintoma do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) que já se torna mais que palpável. Se na fatídica cena seu grito foi engolido pelo golpe de Abby, aqui sua angústia é audível e visceral.

Porém, três meses depois e repentinamente está tudo bem. Ellie recebe alta do hospital e, em uma última consulta, atesta que não sente mais dores. Ao conversar com Gail (Catherine O’Hara), a terapeuta indiscutivelmente antiética e que volta a ganhar destaque, a garota demonstra um equilíbrio emocional invejável. Não só compreende suas emoções, como também identifica a matriz delas e como resolvê-las. “Se todos tivessem essa saúde mental, o que eu faria por erva ou cachaça?”, indaga a psicóloga.

Mas esse papo não passa de pura balela. Ellie mente e Gail finge que acredita. No seu íntimo, caminhando pelos corredores da clínica, descobrimos a verdade. Enquanto treina boxe com Jesse (Young Mazino), é perceptível o quanto a dor física ainda é presente. Sozinha na casa de Joel, segurando seu revólver e cheirando suas jaquetas, Ellie finalmente permite-se desabar em choro. Contudo, a voz de Dina (Isabela Merced) interrompe seu momento e, mais uma vez, ela enxuga as lágrimas e recobra sua casca impenetrável. Aqui, os diálogos excessivamente descritivos e expositivos de Mazin servem de armadilha para o público, velando a natureza legítima dos personagens.

No podcast oficial da série, Craig Mazin descreve a conversa de Ellie e Gail como um duelo com palavras (Foto: Liane Hentscher/HBO)

Ao longo dos 55 minutos de episódio, esse comportamento se repete insistentemente. Sob recomendação de Jesse, que agora é membro do Conselho, ela prepara um discurso para apresentar na reunião. O pedido inicial era que 16 pessoas viajassem para Seattle. Uma perda grande demais para uma Jackson em reconstrução. Assim como foi com Tommy, a invasão dos infectados à cidade diluiu o impacto da morte de Joel para a comunidade. Antes de Ellie, outros moradores advogam que também sofreram perdas naquele dia. E mesmo com seu manifesto — mentiroso, mas convincente — sobre justiça e coletividade, a proposta ainda foi rejeitada.

Entretanto, que surpresa quando, durante o sermão de um residente sobre misericórdia, Seth (Robert John Burke), o homofóbico do primeiro episódio, levanta-se em defesa de Ellie. Quase espumando pela boca, ele dispara cada um dos pensamentos enrustidos dela. Mais tarde, é ele quem auxilia Ellie e Dina a partir de Jackson na calada da noite, junto a outros ‘apoiadores da causa’. Em uma versão corrompida de um potencial arco de redenção, Seth reflete e valida todo o ódio internalizado da protagonista, que não consegue deixar de se identificar com ele — como um demônio em seu ombro que cochicha seus desejos mais sórdidos.

A série nunca deixa claro se Tommy, Maria e Jesse votaram a favor ou contra a proposta de Ellie durante a reunião do Conselho (Foto: Liane Hentscher/HBO)

Dina é outra personagem que ainda tem suas intenções ocultas. Claro que, em The Last of Us da HBO, suas motivações nesta travessia são bem mais pessoais, tendo em vista não só sua relação próxima com Joel, como também sua presença física no grande momento. Porém, o joguinho é notório. Mesmo depois de beijar Ellie na frente de todos, visitá-la frequentemente no hospital e arriscar tudo em uma missão suicida por ela, a jovem segue se fazendo de difícil. Em um diálogo íntimo dentro de uma barraca à lá Brokeback Mountain, Dina pede para sua parceira avaliar o beijo na festa de ano novo, mas em um tom comicamente afastado.

“Você é gay, eu não, só estou curiosa”, ela alega. E junto à frase, uma revolta generalizada da comunidade queer fã de The Last of Us e do casal nos games. Justificada, mas precipitada. Tal como Ellie, Dina encobre o que verdadeiramente sente atrás de um véu de comédia e jocosidade. Um comportamento tóxico, sim, mas absolutamente fiel à experiência de pessoas LGBTQIAPN+ no armário — sobretudo bissexuais. Dando continuidade à abordagem coming-of-age definida no início da temporada, acompanharemos de perto a descoberta sexual de Dina a partir daqui.

No caminho para Seattle, Ellie visita o túmulo de Joel e deixa, em vez de flores, grãos de café, que era sua bebida favorita (Foto: Liane Hentscher/HBO)

Depois de muita elipse e muita conversa jogada fora a cavalo, Ellie e Dina enfim chegam em Seattle. As únicas pistas que a dupla tem são o emblema de um lobo e uma sigla — WLF, ou Washington na Luta pelo Futuro, em português. O palpite de Dina é que trata-se de um grupo pequeno, fácil de lidar. Mas, no trajeto, encontram uma trilha de destruição. Nem mesmo crianças foram poupadas. “Não matamos quem está indefeso”, foi o que Abby alegou em seu discurso para Joel no último episódio. E só existe um contexto em que códigos militares são livremente descumpridos: guerra.

Mais tarde, a suspeita das duas é brutalmente contestada. Com a liberação de Manny (Danny Ramirez), instalado em uma torre de vigia, vemos um esquadrão enorme de soldados cruzar uma avenida, seguidos de tanques blindados e armados com grandes torretas. Na sede por vingança, elas acabam de entrar no olho do furacão, em um cenário de calamidade muito maior que suas aspirações. De agora em diante, todas as cartas estarão na mesa. Ellie pode se enganar o quanto for. As circunstâncias irão sujeitá-la à fração mais impiedosa de si.

Um grupo religioso desconhecido foi introduzido neste episódio em uma cena isolada, enquanto fugiam da WLF (Foto: Liane Hentscher/HBO)

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