The Last of Us da HBO: o que esperar da 2ª temporada?

A adaptação da aclamada franquia de videogames tem a árdua missão de reproduzir o sucesso — e contornar as polêmicas — do segundo jogo

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Por Enrico Souto e Gabriel Arruda

Quando foi lançado para o PlayStation 3 no verão de 2013, era impossível prever a marca que The Last of Us faria na cultura, mas o seu impacto na indústria dos jogos digitais já estava sendo sentido. A (agora icônica) descrição feita por Matt Kamen na Empire Magazine descrevia o jogo da Naughty Dog como “‘um possível momento Cidadão Kane dos videogames – uma obra-prima que seria revisitada positivamente por décadas”. Os anos provaram essa citação correta, uma vez que a saga pós-apocalíptica recebeu atualizações para cada uma das gerações de consoles que a sucederam, além de uma aclamada e polêmica sequência.

No mundo dos games, The Last of Us foi mais um testamento da desenvolvedora responsável por Uncharted de que era sim possível criar uma ponte entre obras interativas e entretenimento cinematográfico. Com uma trama madura e uma jogabilidade tensa, a história de um sobrevivente desgrenhado e uma garota inocente capturou não só a atenção de críticos como de jogadores ao redor do mundo. Da noite para o dia, Joel e Ellie viraram mascotes tão conhecidos da PlayStation quanto Nathan Drake, Ratchet & Clank ou Kratos. Quando a jogabilidade do reboot de God of War foi revelada, não foram poucas as comparações com o título da Naughty Dog. Na última década, cada vez mais produções AAA apostaram no mesmo tipo de storytelling cinematográfico para contar histórias emocionalmente cativantes sobre os laços humanos entre nós. Enquanto esse avanço não pertence apenas a um jogo ou outro, é inegável o papel de The Last of Us na sua popularização.

Quando Craig Mazin, o criador da celebrada minissérie Chernobyl, foi apontado como responsável por traduzir a obra para um formato seriado, muitas dúvidas surgiram: será que o impacto latente de The Last of Us nos jogos seria medido com a mesma intensidade num meio já acostumado com histórias de alto calibre? E, para aqueles já familiarizados com a franquia, uma outra dúvida menos urgente mas igualmente intrigante surgia: até onde essa adaptação iria? Afinal, chamar o lançamento de The Last of Us Part II em 2020 de divisivo seria um eufemismo, com seu formato não-linear sendo integral para o sucesso narrativo e da controvérsia no cerne de sua experiência. Como uma das maiores traições na história dos videogames seria revisitada em um meio não-interativo?

Responsável por “fechar” a geração do PS3, The Last of Us definiu tendências para as gerações seguintes de jogos, inspirando desde clássicos até estreantes (Foto: Naughty Dog)

É injusto chamar The Last of Us de “a primeira adaptação boa de videogames”. Anos antes animações como Castlevania e Arcane já produziam narrativas de qualidade, elevando seu material original ao invés de se envergonhar dele. Até mesmo os filmes de Resident Evil de Paul W. S. Anderson, apesar das diferenças gritantes com os jogos, possuem sua parcela de fãs. O verdadeiro marco da produção original da HBO foi o de quebrar a noção de que essas adaptações não poderiam replicar a aclamação de seus próprios meios, sendo reconhecidas por sua excelência em outros formatos.

A primeira temporada de The Last of Us conseguiu abocanhar cinco indicações ao Emmy principal e várias vitórias significativas nas categorias de atuações convidadas, som, montagem e efeitos visuais no Emmy técnico. Além disso, Pedro Pascal driblou metade do elenco de Succession durante o SAG Awards e levou para casa a cobiçada estatueta de Melhor Ator em Série de Drama. Prova cabal de que há um espaço na cultura audiovisual para adaptações de videogames de prestígio, não é acidente a Sony ter anunciado uma série de adaptações de suas propriedades a serem produzidas nos anos seguintes. Em 2024, a adaptação de Fallout para o Prime Video reproduziria esse sucesso ao ser uma das oito séries indicadas na categoria de Melhor Série Dramática.

Bêbado, Pedro Pascal aceitou sua vitória no SAG Awards com surpresa genuína (Foto: Getty Images)

De videogame de sucesso para televisão de prestígio

Após o sucesso aterrador no ramo dos games, uma adaptação de The Last of Us para o audiovisual era questão de tempo. Desde 2014, Naughty Dog e Sony discutiam levar a franquia para o Cinema. O projeto chegou a passar pelas mãos da Screen Gems, subsidiária da Sony responsável pelos já citados filmes de Resident Evil, que convocou Sam Raimi para a direção. Entretanto, a ideia foi engavetada por divergências criativas com Neil Druckmann, mente por trás do jogo.

Por outro lado, este não foi um problema para Craig Mazin. O showrunner da produção da HBO, junto do próprio Neil, já era apaixonado pelo material base e estava completamente decidido a traduzir a obra de 2013 da maneira mais fiel e autêntica possível. Se esta paixão transborda por cada linha de diálogo da primeira temporada, que entrou no ar em janeiro de 2023, essa ambição também se torna o Calcanhar de Aquiles da série.

Afinal, porque transformar The Last of Us em Televisão de prestígio, se o jogo por si só já dialoga tão diretamente com este formato? Para os criadores, sem a limitação de perspectiva que é fatalmente imposta em um game, as possibilidades de expansão desse universo se multiplicam. Então a série amplia o contexto da pandemia do fungo cordyceps, que implica em todos os eventos da história, além de nos aproximar mais intimamente de seus personagens. Este esforço resulta em uma experiência satisfatória, mas incapaz de dissociar-se da obra original.

Na série, Joel e Ellie já visitam a cidade de Jackson em sua viagem pelos Estados Unidos, antecipando elementos chave para a segunda temporada (Foto: HBO)

As escalações de Pedro Pascal e Bella Ramsey nos papeis de Joel e Ellie — apesar das polêmicas fabricadas pela patota de ‘nerdolas’ do Twitter/X — demonstrou-se a melhor possível para os protagonistas. Através de suas interpretações, alcançamos novas camadas emocionais dos personagens, de tal forma que eles tornam-se quase distintos das suas contrapartes dos jogos. O Joel de Pedro é mais sensível e honesto, enquanto a Ellie de Bella é menos inocente e ligeiramente mais colérica.

Excertos menos instigantes do primeiro jogo, como a passagem pela cidade do Bill, foram completamente reescritos e ressignificados para refletir, de sua maneira particular, os temas que permeiam a história. Personagens simplórios que apenas serviam de escada para a dupla principal, como Henry e Sam, são aprofundados e ganham jornadas e dilemas próprios, dando vida e dinamicidade para cada um dos cenários que adentramos.

Quem não chorou com a cena dos morangos? (Foto: HBO)

Contudo, assim que atingimos a metade da temporada — quando os momentos mais icônicos são adaptados —, The Last of Us da HBO se vê no centro de um cabo de guerra entre fidelidade e originalidade. Talvez com medo de não fazer jus à expectativa dos fãs, certas cenas foram filmadas fielmente, com diálogos, fotografia e coreografia mimetizando os mesmos trechos do videogame — e, eventualmente, contradizendo o rumo escolhido para o desenvolvimento dos personagens na série. Conflitos na reta final da narrativa, que exibiam potencial para expansão, foram rigorosamente reproduzidos, deixando a sensação de um término precipitado e esbaforido.

Ao passo que as incertezas ao redor das escolhas de adaptação fazem de The Last of Us da HBO tão contraditoriamente intrigante, a recepção da imprensa e do público do sofá foi unânime e indiscutível. Pela primeira vez, gamers que se emocionaram em 2013, com o controle de PlayStation 3 em mãos, poderiam apresentar essa história que tanto os comoveu para suas mães e pais — e comovê-los também. O sentimento para Mazin e Druckmann foi de missão cumprida, e de um leque de oportunidades ainda maior para o próximo ciclo da série.

Mesmo se provando uma atriz formidável, parte do público segue questionando a escalação de Bella Ramsey por conta de sua aparência jovem na segunda temporada — ainda que seja mais velha que a personagem na história (Foto: HBO)

The Last of Us: Parte Dois: Parte Um

Se na primeira temporada havia o perigo de se ater demais ao material original, na segunda o problema é justamente o contrário: não há como traduzir plenamente The Last of Us Part II para as telas sem mudar radicalmente a montagem da história, que já é pelo menos duas vezes maior do que a primeira parte. A decisão criativa de utilizar mais de uma temporada para adaptar a sequência por si só já implica no sacrifício da unidade formal presente no jogo. Somando isso ao fato de Mazin já ter expressado seu desinteresse em adaptar eventos que vão além da história contada pela Naughty Dog, surge a preocupação de que a segunda parte esteja sendo estendida para além de sua duração para extrair o máximo de conteúdo para o seriado.

No entanto, essa divisão dá a primeira oportunidade real para The Last of Us se diferenciar de seu material original e provar sua razão de ser. Os trailers lançados permanecem vagos o suficiente sobre a trama abordada e a razão da nova jornada, se assemelhando ao marketing do jogo, mas já podemos ver algumas das cenas mais icônicas da sequência tomando forma, algumas das quais só ocorrem na segunda metade do videogame. Impossibilitado de reproduzir fielmente o que tanto ama, parece que Mazin e companhia decidiram por remixar a narrativa, misturando algumas das revelações latentes com a primeira e mais previsível metade.

A confirmação da terceira temporada pelo menos dá a certeza de que a narrativa será completada, mesmo que demore algum tempo. Os criadores inclusive não descartaram a noção de adicionar mais uma temporada à adaptação, no que parece ser o novo pacote de prestígio da HBO, seguindo os passos de Succession e A Casa do Dragão. Como isso afetaria o ritmo da adaptação, só o tempo irá dizer. Com uma história rotativa, muitas coisas acontecem num curto período de tempo em The Last of Us Part II, com quebras marcantes de perspectivas que já emulam formatos episódicos. É também interessante notar o retorno de Halley Gross, diretora narrativa do videogame e roteirista da primeira temporada de Westworld, para trabalhar na adaptação, co-escrevendo os últimos dois episódios com Druckmann e Mazin.

Mazin, Druckmann, Gross e o elenco de The Last of Us se reuniram no festival SXSW para revelar a nova temporada da série (Foto: Tibrina Hobson)

Porém, nada nos intriga mais do que a escalação de Abby, personagem importante do jogo e praticamente co-protagonista da trama, que foi originalmente vivida por Laura Bailey e que na série será interpretada por Kaitlyn Dever. A personagem, que no jogo é caracterizada como uma mulher adulta motivada por sua vingança pessoal e pelo esforço físico de ter que sobreviver num mundo impossivelmente hostil, parece bem menos imponente nas primeiras imagens da série, se assemelhando muito mais ao porte físico da Ellie de Bella Ramsey.

Alguns questionaram a escalação, apontando que Dever combina muito mais com o perfil da personagem de Ramsey (o qual ela teria feito testes para viver em versões anteriores do projeto, quando era mais nova). A atriz inclusive já havia participado de uma produção da Naughty Dog anteriormente, interpretando Cassie Drake no epílogo de Uncharted 4: A Thief’s End, jogo também dirigido por Neil Druckmann. Com esse histórico, fica fácil entender por que ela estaria envolvida na adaptação de The Last of Us. Com certeza suas semelhanças com a outra protagonista vão ser usadas visualmente para comunicar o espelho entre seus arcos, mas não deixa de ser triste vermos uma personagem como Abby ser descaracterizada dessa maneira quando há tão poucas na cultura popular com o seu tipo físico específico.

Será que Kaitlyn Dever aprendeu a jogar golfe para viver o papel de Abby? (Foto: HBO)

Nossos dias futuros

Outro destaque do elenco vai para Jeffrey Wright, que retorna para dar vida à Isaac, mesmo personagem que interpretou no jogo e que só surge na segunda metade, e Catherine O’Hara, que surge como uma personagem nova e que aparentemente será uma espécie de terapeuta para Joel. Livres das amarras de pontos de vista, esses personagens podem seguir o caminho de Bill, Frank, Henry e Sam e servir de portas para ângulos antes não explorados desse universo, dado o tempo e atenção necessários na narrativa. Porém, com a adição de tantos personagens novos, há a preocupação de que seja perdida a intensidade da busca altamente pessoal de Ellie que no videogame é a força motriz dessa primeira metade da história.

Por outro lado, seria idiotice tentar reproduzir as sensações que o jogo te faz sentir, uma vez que um seriado é, para a surpresa de muitos, diferente de um videogame. O desejo de ver algumas das nossas cenas favoritas representadas de novo por vezes entra em conflito com a necessidade de se abraçar novas possibilidades e, honestamente, esse é um dos motivos de The Last of Us Part II ser tão especial — e controverso. É uma obra que existe devido ao sucesso estarrecedor de sua antecessora, mas que usa desse laço para subverter nossas expectativas, se deliciando no quão difícil algumas de suas viradas são de digerir. Não é raro ouvir relatos de pessoas que tiveram que parar de jogar em determinado momento e só voltaram depois de um certo tempo.

Seria uma pena se a sua adaptação não carregasse a mesma ousadia que permitiu que o opus da Naughty Dog fincasse suas presas profundamente na cultura pop, sobrevivendo por mais de uma década na boca do povo com apenas dois títulos. Ao mesmo tempo, a HBO tem a chance única de criar uma experiência estonteante que possa surpreender até mesmo aqueles mais habituados com a história dos jogos. The Last of Us é The Last of Us por um motivo e, contanto que a série siga a intuição criativa que guiou a franquia nos últimos 12 anos, independentemente do caminho traçado, estaremos em boas mãos.

“Ah, Ellie… eles deviam estar morrendo de medo de você” (Foto: HBO)

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