E vocês, quem são?: um desabafo reflexivo sobre a branquitude

Com um texto intenso, Samuel de Assis desafia a plateia a reconsiderar o papel que ocupa no mundo em monólogo sobre a história do país

min de leitura

A imagem apresenta Samuel de Assis, ator negro, sem camiseta e com um cordão longo no pescoço, iluminado pelas luzes do teatro. O olhar dele está fixo em algum ponto na plateia, com o busto e o peito visíveis. O fundo é preto.

E vocês, quem são? narra a história do Brasil do ponto de vista de quem ainda sofre preconceito e discriminação (Foto: Caio Lirio)

Ator Samuel de Assis reflete sobre racismo, identidade e pertencimento em monólogo inspirado em suas próprias vivências


O coração é um espaço onde cabem diferentes emoções, e o do ator Samuel de Assis já estava saturado de sofrer injúrias e discriminação. Com sentimentos entalados na garganta, ele transformou essa dor em cena no monólogo E vocês, quem são?.

Com atuação e direção do próprio Samuel, o espetáculo, escrito por Jonathan Raymundo, nasceu de um desabafo do ator. Ele mesmo adaptou o texto para os palcos, temendo que o resultado não correspondesse às suas expectativas caso confiasse essa função a outra pessoa.

A ideia de incluir um coração no cenário partiu de Márcio Macena, responsável pela direção de arte minimalista, que soube traduzir a necessidade de Samuel de expressar tudo o que estava guardado em seu peito. O órgão humano permanece no centro do palco, iluminado por luzes que o fazem parecer pulsar a cada ritmo da fala, intensificando a expressão da angústia, raiva, descontentamento e, por vezes, alívio do ator.

Além da encenação de Assis, a iluminação do coração vermelho é outro elemento que fascina (Foto: Bruna Laja)

De coração aberto, Assis questiona gênero, raça e o lugar ocupado pela branquitude desde a invenção do Brasil como Estado excludente e opressor, abordando temas como o embranquecimento do escritor Machado de Assis e a violência a qual a população negra está submetida todos os dias.

A peça traça um retrato da história do país, evidenciando como as marcas do racismo do período colonial ainda persistem na sociedade. A trilha sonora, executada ao vivo pelos músicos Cauê Silva e Leandro Vieira, enriquece a ambientação de diferentes cenários e destaca a obra de artistas negros, incluindo uma canção original do rapper Coruja BC1 e outra de Larissa Luz, que também assina a direção musical ao lado do coletivo Os Capoeira.

Entrelaçando elementos da cultura negra e simbolismos das religiões de matriz africana, E vocês, quem são? retrata o Brasil de ontem, de hoje e, provavelmente, de amanhã, provocando arrepios no encerramento e emocionando o público com sua reflexão agressiva.

Em conversa com o Tesoura com Ponta, Samuel de Assis compartilha detalhes sobre o monólogo, atualmente em cartaz no interior de São Paulo, além de falar sobre sua trajetória, os desafios da carreira e suas paixões, como o samba.

Matheus Santos: O teatro exige um contato direto com o público, enquanto a TV e o streaming têm uma recepção mais filtrada. Como essas diferenças impactam sua atuação?

Samuel de Assis: Não faz muita diferença. Meu trabalho de atuação é muito pautado na tentativa de trazer uma verdade para o que está sendo sentido e dito. A única diferença fica por conta do tamanho da expressividade.

Matheus Santos: O Ben, de Vai na Fé, foi um papel de grande destaque na sua carreira. Como foi interpretar um protagonista tão querido pelo público?

Samuel de Assis: O Ben mudou minha vida e ajudou a mudar a história da televisão brasileira. Não posso sentir um orgulho maior no mundo.

Em Vai na Fé, o advogado interpretado por Samuel de Assis (Benjamin) conquistou o público com sua trajetória heroica [Foto: Manoella Mello / TV Globo]

Matheus Santos: A novela trouxe uma abordagem sensível sobre representatividade e questões sociais. Como foi a experiência de fazer parte desse projeto?

Samuel de Assis: Não tem orgulho maior do que estar num produto onde 70% do elenco é negro e sem fazer papéis marginalizados. Onde a equipe tem uma parcela gigante de pessoas pretas e o reflexo disso tudo foi o sucesso absoluto de crítica e audiência. Como me sinto com isso? Não tenho nem palavra que defina!

Matheus Santos: Você sente que Vai na Fé marcou uma nova fase na sua carreira? Recebeu convites diferentes após esse trabalho?

Samuel de Assis: Claro que sim! É um antes e depois na vida de um monte de gente.

Matheus Santos: Você já atuou em séries como 3%, Cidade Invisível e Rensga Hits!. O que mais te atrai nas produções para streaming?

Samuel de Assis: Eu amo obra fechada. Poder construir uma personagem com começo, meio e fim, desde sempre, é um luxo!

Matheus Santos: Como a dinâmica de gravação em plataformas digitais se compara à TV aberta? Existe mais liberdade criativa?

Samuel de Assis: A liberdade criativa não muda muito. Ela só é dosada de forma diferente. Mas ambas são legais, cada uma a seu modo.

Matheus Santos: Recentemente, você também tem se dedicado ao Cinema. Existe  algum projeto cinematográfico em andamento?

Samuel de Assis: Sim. Vou rodar um longa sobre adoção. Projeto lindo de uma amiga minha.

O ator já esteve em produções policiais, como o filme 5X Favela – Agora por Nós Mesmos, em que interpretou um policial, e na série Na Forma da Lei, no papel de Ademir, um jornalista homossexual (Foto: Márcio de Souza / TV Globo)

Matheus Santos: Como você trabalha a construção emocional dos seus personagens para que eles soem autênticos ao público?

Samuel de Assis: Não sei explicar muito bem isso, mas procuro viver realmente o que aquela pessoa vive. Isso me dá segurança para sentir o que ela sentiria.

Matheus Santos: Depois de tantos projetos de sucesso, há algum papel ou gênero que você ainda sonha em interpretar?

Samuel de Assis: Ainda quero viver um bom vilão de novela!

Matheus Santos: Como surgiu sua conexão com o samba e com a Beija-Flor?

Samuel de Assis: Com o samba, desde que nasci. Com a Beija-Flor, desde criança, quando dizia ao meu pai que ia dormir e fugia para ver o desfile das escolas. Sempre fui Beija-Flor e senti que foi um presente de Orixá o convite para protagonizar o enredo de 2024.

Matheus Santos: Como nasceu a ideia de criar E vocês, quem são?? O que te motivou a levar essa história ao palco?

Samuel de Assis: Eu pedi um texto ao Jonathan [dramaturgo] e ele me mandou a primeira versão em três horas. Acho que tudo já estava na cabeça dele e ele derramou o texto na tela. Então, peguei o texto proseado dele e fiz um trabalho de dramaturgismo para criar uma história. Como eu não sabia se isso ia dar certo, fiquei receoso de chamar alguém para dirigir, por isso todo o processo de ensaio fiz em frente ao espelho.

Eu pedi um texto ao Jonathan [dramaturgo] e ele me mandou a primeira versão em três horas. Acho que tudo já estava na cabeça dele e ele derramou o texto na tela. Então, peguei o texto proseado dele e fiz um trabalho de dramaturgismo para criar uma história. Como eu não sabia se isso ia dar certo, fiquei receoso de chamar alguém para dirigir, por isso todo o processo de ensaio fiz em frente ao espelho.

Matheus Santos: O monólogo tem um forte teor político e social. Como foi o processo de pesquisa para desenvolver o texto?

Samuel de Assis: A minha própria vida, uai! A vida de todos os pretos e pretas que nascem no Brasil. O espetáculo fala exatamente sobre tudo que vivemos, o que sofremos e sentimos o tempo todo.

Matheus Santos: Quais foram os maiores desafios de encenar um monólogo sem a troca direta com outros atores em cena e de dirigir a própria peça?

Samuel de Assis: Meus outros atores são as pessoas da plateia. Eu contraceno diretamente com eles. Ou seja, é o mesmo desafio de uma peça com mais gente. Eu fiz a peça na pandemia, então fui obrigado a dirigir a peça. Fiz toda a encenação na frente do espelho. Foi um processo doloroso e incrível ao mesmo tempo.

Meus outros atores são as pessoas da plateia. Eu contraceno diretamente com eles. Ou seja, é o mesmo desafio de uma peça com mais gente. Eu fiz a peça na pandemia, então fui obrigado a dirigir a peça. Fiz toda a encenação na frente do espelho. Foi um processo doloroso e incrível ao mesmo tempo.

Matheus Santos: Você enxerga a possibilidade de adaptar o monólogo para outro formato, como audiovisual ou livro?

Samuel de Assis: Não quero pensar nisso agora!

Matheus Santos: Como a peça transformou você como artista e como pessoa?

Samuel de Assis: Costumo dizer que esse espetáculo mudou minha vida, porque ele me ensinou muita coisa. Sou um homem preto que foi criado no mundo branco. Eu me reconheci, me aceitei e passei a reconhecer o mundo com um olhar de um homem preto já na vida adulta. Só aí comecei a entender de verdade o mundo real e comecei a lutar. E eu acredito que sou um homem melhor e mais forte depois desse espetáculo, que é feito para todo mundo – para quem é branco, preto, amarelo, quem está vivo.

Matheus Santos: Além das obras de Machado de Assis presentes no monólogo, há algum filme, livro ou peça que mudou sua forma de enxergar o mundo e influenciou sua trajetória?

Samuel de Assis: Vários! Mas cada um por um motivo diferente. Tem aqueles que indico como aulas de atuação; os que indico como ajuda no letramento racial, os que indico como entretenimento – que também mudam vidas -, etc. Se eu fizer uma lista, não caberá aqui.

Matheus Santos: Qual foi o personagem mais desafiador que você já interpretou e por quê?

Samuel de Assis: O Lucas, da Série INSÂNIA da Star+, porque ele era esquizofrênico e fizemos uma proposta de fazer três takes de cada cena e deixar o montador criar a personagem. Minha cabeça bugou várias vezes, porque chegou uma hora que eu já não sabia mais o que estava fazendo.

Apesar da proposta de terror e de um elenco renomado, INSÂNIA foi cancelada semanas antes do início das gravações da segunda temporada (Foto: Pio Figueiroa / Divulgação)

Matheus Santos: Se pudesse reviver um personagem que já fez, com a experiência que tem hoje, qual seria e por quê?

Samuel de Assis: Otelo. Porque sempre quis fazer e fiz muito cedo. Acho que com a maturidade que tenho hoje, faria melhor ainda (sem modéstia).

Matheus Santos: Se pudesse interpretar uma figura histórica em uma produção, quem escolheria?

Samuel de Assis: Machado de Assis. Meu sonho é fazê-lo em um longa.

Matheus Santos: Qual a maior lição que a atuação já te ensinou sobre a vida?

Samuel de Assis: Várias coisas! Que as coisas tem o tempo delas; Que nem sempre o que a gente está fazendo tá transmitindo o que a gente quer transmitir. Que a vida pode e deve ser mais leve. A arte me ensina todos os dias a viver melhor!

Várias coisas! Que as coisas tem o tempo delas; Que nem sempre o que a gente está fazendo tá transmitindo o que a gente quer transmitir. Que a vida pode e deve ser mais leve. A arte me ensina todos os dias a viver melhor!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *