Na Tailândia, The White Lotus amansa a selvageria de outrora

3ª temporada renova a alma da série, que preza pelo dito ao feito

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Em poucos minutos, o roteiro de Mike White é sagaz e competente na apresentação dos personagens, seus vícios e os padrões de que tentam fugir. Mal chegaram na Tailândia, e a família Ratliff é definida pela ausência dos sentidos, na inconsciente certeza de que, ao longo da semana seguinte, segredos serão acessados à contra-gosto deles.

O mesmo vale para o trio de loiras-amigas que datam do colegial e usam o cachê de Jaclyn (Michelle Monaghan) como desculpa para hospedarem-se no luxuoso White Lotus situado na Ásia. Temos a descontente Laurie (Carrie Coon) e a inquieta Kate (Leslie Bibb), em companhia da atriz que passou do ponto. Do caldeirão que fumega ressentimento, White adiciona doses de desconfiança. 

Com menos atenção aos funcionários, a temporada é centrada na tragédia do destino (Foto: HBO)

Inveja é a palavra que rege todos os núcleos da 3ª temporada, numa miríade viajante de asco, arrependimento e ganância. Olhando para a família, por exemplo, Timothy (Jason Isaacs) organiza-se para desanuviar o estresse do mercado econômico só para, na primeira notícia que ouve de casa, descobrir ter sido descoberto. A ligação com o antigo parceiro, voz de Ke Huy Quan, arruina as férias do patriarca, que passa o restante da estadia dopado.

O conteúdo vem do estoque quase infinito de Victoria (Parker Posey), uma perua mãe de três que opta, diariamente, por tragar a nuvem de comprimidos que retiram-na da aparentemente cruel e insuportável realidade que vive. Distante do marido e alheia aos desejos individuais dos filhos, a personagem ganha o controle e as escolhas ousadas de Posey, num sotaque sulista trôpego e instantaneamente memorável.

Lochlan passeia entre os lados opostos da família, da paz ao caos (Foto: HBO)

O mais velho, Saxon (Patrick Schwarzenegger), é um mala sem alça. A do meio, Piper (Sarah Catherine Hook), compensa a falta de miolos do resto da família. E o mais novo, Lochlan (Sam Nivola), está sem norte quanto ao futuro que trilhará. Do trio, Mike White disseca dinâmicas psicossexuais dormentes na criação conservadora, além de oferecer vislumbres do que cada tipo americano representado – o atleta, a CDF e o virgem -, produz sob pressão.

 Para arrematar as diversas tramas, a temporada intercala núcleos distintos e condensa suas particularidades e aquilo que compartilham. Chelsea (Aimee Lou Wood) rejeita o status de sugar baby, cuidando de Rick (Walton Goggins) mais como mãe do que como namorada. Oposto de Chloe (Charlotte Le Bon), que trata Greg/Gary (Jon Gries) como o canalha aproveitador que é.

O retorno de Jon Gries não foi anunciado, pegando todos de surpresa na silenciosa aparição da estreia (Foto: HBO)

Vigarista de primeira, esconde-se do mundo na Tailândia. Mas, para o azar do viúvo, a chegada de Belinda (Natasha Rothwell) estraga o que deveria ser apenas outra temporada de bebidas caras e noites de sexo. Diretamente da sede do Havaí, a mulher aprende com os companheiros asiáticos técnicas de relaxamento da região, ainda em busca de munir suficiente repertório – e dinheiro – para sagrar-se chefe de si mesma.

Menos interessado em eclodir os dramas dos hóspedes para os funcionários do hotel, Mike White pronuncia com cuidado as ações da classe trabalhadora. Pornchai (Dom Hetrakul) compartilha mais do que massagens, abrindo Belinda para possibilidades que pareciam remotas. 

Ao lado do filho Zion, papel de Nicholas Duvernay, Belinda faz a própria sorte (Foto: HBO)

Mais embaixo na cadeia, o segurança Gaitok (Tayme Thapthimthong) morre de amores por Mook (Lalisa Manobal), que enxerga o potencial da paixão, embora sorrateiramente enrole o homem com sorrisos bonitos e palavras desconcertantes. Ao lado da inveja, a sensação de que a bondade não é páreo para a selvageria está em voga na temporada. 

Com o budismo pairando em tema e produto sobre os personagens, Gaitok, pacífico que só, é ridicularizado pelas tentativas de livrar-se do estigma zen e abraçar a crueldade que parece reinar no local. O trio de russos organiza o assalto, que não apenas humilha a honra do segurança, mas coloca-o num espiral de culpa sem saída.

Depois de enfrentar a vergonha dentro da própria pele, Saxon se liberta (Foto: HBO)

Comentando, também, sobre o avanço ocidental no lado oposto do mundo, The White Lotus entra de cabeça no conflito de paz versus guerra. Piper quer seguir o silêncio em busca de entendimento, enquanto a mãe, antes de dormir, reza para que os sonhos dela não se concretizem. 

Os lobos de Wall Street farejam as fraquezas e não hesitam em abocanhar. Saxon, do alto de um pedestal autoimposto, percebe que as estruturas que o mantinham em alta são mais frágeis do que aparentam. Na louca noite que acaba com o resto de dignidade que mantinha, ele encara a própria miudeza, refém do que as mulheres, e o irmãozinho, impõem sem pedir consentimento.

A regra é clara: em White Lotus, todos os atores participam de audições, recebem o mesmo salário e são creditados em ordem alfabética na abertura (Foto: HBO)

E se a presença de Armand e Valentina era parte do circuito elétrico das temporadas anteriores, o gerente Fabian (Christian Friedel, de Zona de Interesse) surge menos vidrado nos acontecimento, relegando o posto de autoridade local para a fascinante Sritala (Lek Patravadi), esposa do dono do White Lotus.

Diva imagética do país, a personagem articula-se na paralela odisseia de Rick, que rastreia o marido de Sritala, Jim (o soberbo Scott Glenn), a fim de dar cabo do velho. O motivo, novamente, cai no campo da inveja e do remorso, já que Rick tornou-se órfão pelas ações do homem. Para disfarçar as reais e mortíferas razões do encontro, ele convoca um parceiro de longa data.

Na semana anterior à exibição da finale, o compositor Cristóbal Tapia de Veer revelou que não voltará para a 4ª temporada e liberou nas redes sociais sua versão da música de abertura, vetada pelo criador (Foto: HBO)

Frank (Sam Rockwell), no monólogo mais imprevisível do ano na TV, se apresenta aliado à calmaria e averso ao caos que rege o mundo de fora. Nas palavras de White, o vencedor do Oscar encena uma explosão de descoberta e epifania tardias, esbarrando na psique e nos desejos dormentes do ser. Mais um ponto à favor da autoria do criador, que busca caminhos distintos das passagens pelo Havaí e pela Itália.

Na Tailândia, esta versão de The White Lotus é mais cerebral e menos afoita. A ação está descrita no texto e nas nuances que cada ótimo intérprete escolhe fazer uso e flexionar. O núcleo das amigas, por acaso, é composto por micro agressões que culminam na grande briga do penúltimo episódio, quando Laurie, farta de ignorar o presente, cava no passado as razões para suas mágoas.

White filmou mais do que mostrou, com as atrizes contando de diversas sequências cortadas ou diminuídas, de um sonho profético ao familiar queer de uma delas (Foto: HBO)

Mas, dando cabo de anos de conflitos, Coon revela os desejos que aprendeu a valorizar. É sacro e perverso, na mesma maneira em que o desabafo torna-se prova cabal do roteiro de Mike White, sempre entendendo a origem das feridas e não apenas as consequências da inflamação. Sem sangue derramado entre elas, a viagem foi turbulenta, mas essencial.

O mesmo não pode ser dito de Chelsea e Rick, vítimas trágicas e românticas dos impulsos. Para o homem que domou o ódio e resolveu viver para além de sua sombra, encarar o passado e o fracasso suplantou qualquer senso de paz. Ela, tão competente aos seus feitos e alerta aos perigos que chegam em três parcelas, permanece ao lado de seu eterno companheiro. Como opostos em perfeita atração, flutuam entre as águas e o sangue, cientes de que a morte do corpo dista da morte da alma. 

Enfim, juntos (Foto: HBO)

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