The Last of Us – 2×01 | A calmaria antes da tempestade

Abrindo a segunda temporada, Dias Futuros prepara o terreno para uma jornada ainda mais agressiva e cruel do que a que já presenciamos

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Sob a vista de uma manada de girafas, quatro jovens em trajes militares se lamentam perante túmulos improvisados. Mas uma mulher, com cabelos loiros amarrados em uma única trança, vira as costas. O grupo de Vagalumes desgarrados discute onde podem se refugiar a seguir. Ela não. “Não antes de matar Joel”, diz. Com os olhos marejados e fulminantes, ela se debruça na cruz de uma cova desconhecida e pendura seu pingente. A partir dali, não há mais luz para procurar. “Quando o matarmos, mataremos lentamente”. Nada mais importa.

Antes disso, temos contato com uma cena inédita. Pela primeira vez, observamos a reação de Joel (Pedro Pascal) ao icônico “ok” de Ellie (Bella Ramsey). A garota desce morro abaixo em direção a Jackson, enquanto o antigo contrabandista, com um semblante revolto e abatido, tem somente uma certeza: sua decisão o perseguirá até o fim de seus dias. É assim que Dias Futuros, o primeiro episódio da 2ª temporada de The Last of Us da HBO, estabelece seu tom. Todo caminho tem um preço, e não há uma ação pregressa que não reverberá a partir de agora.

Na série, o grupo de Vagalumes da Abby foi reduzido, provavelmente para condensar arcos em mais de um personagem (Foto: Liane Hentscher/HBO)

A escolha da adaptação para a TV de estabelecer a motivação de Abby (Kaitlyn Dever) desde o princípio não é por acaso. The Last of Us Parte II tinha o fator surpresa a seu favor que, infelizmente, nunca poderia ser reproduzido. Antes do lançamento do game em junho de 2020, tudo que conhecíamos da antagonista era um trailer de 2017 fora de contexto. Hoje, qualquer consumidor casual que abrir um post da série nas redes sociais irá se deparar com todos os spoilers imagináveis. A estratégia de Craig Mazin, showrunner, além de roteirista e diretor do episódio, é tirar toda e qualquer distração do caminho para focar no que realmente importa.

Cinco anos depois dos eventos da 1ª temporada, o cenário parece tranquilo na realidade idílica de Jackson. Porém, uma tensão constante paira no ar. Mesmo com recursos limitados, a cidade não para de acolher novas pessoas. Com a mão-de-obra disponível, as restaurações que a comunidade precisa não terminarão tão cedo. E do lado de fora, bandos de infectados começam a se acumular. Ao contrário dos videogames, em que sempre foi um símbolo de estabilidade, aqui somos apresentados a uma Jackson em estado de declínio.

Conhecemos neste episódio Benjamin, interpretado pelo pequeno Ezra Agbonkhese, filho de Tommy e Maria e personagem original da série (Foto: Liane Hentscher/HBO)

Da mesma forma, a série se dá a liberdade de mostrar o funcionamento daquela sociedade como jamais vimos. Um grande Conselho, que Maria e Tommy integram, toma as decisões fundamentais para a comunidade. Joel cumpre a função de Mestre de Obras, que exercia antes do apocalipse, e fiscaliza as construções na cidade. Enquanto conserta um disjuntor na mesa de casa, o vemos ter uma meiga conversa com Dina (Isabela Merced), que, nessa história, criou um vínculo genuíno com ele.

Com o coração conflituoso, Joel decide fazer terapia com Gail (Catherine O’Hara), provavelmente uma das únicas psicólogas vivas neste mundo. Mais vulnerável e muito menos letal que sua contraparte dos jogos, ele indaga sobre como Ellie continua o afastando. Nem mesmo Dina consegue ignorar o comportamento rude da — até então — melhor amiga. “Essa me trata como um ser humano”, Joel exclama.

Mas a terapeuta não quer nem saber. “Vai ficar nesse chororô toda vez?”, ela rebate. A interpretação cômica e irreverente de O’Hara não deixa dúvidas: Gail sabe que Joel esconde algo. Mesmo sob pressão, mesmo com ela o enfrentando sobre ter matado seu marido, Eugene, há um ano, ele não cede. “Eu salvei ela”, é tudo o que fala. Se necessário, Joel levará esse segredo para o túmulo. E é exatamente sua incapacidade de admitir suas atitudes que o impede de recuperar a confiança de Ellie.

Gail é uma personagem criada para a série — nos jogos, Eugene teria deixado sua família anos antes de se juntar a Jackson (Foto: Liane Hentscher/HBO)

Quanto à nossa imune favorita, somos introduzidos a sua versão jovem adulta do modo mais visceral possível: em uma briga, derrubando e imobilizando um homem com o dobro do seu tamanho. Era só um treinamento, é verdade. Mas mesmo sem perigo iminente, ela o busca. Ao passo que Joel lida com violência pragmaticamente, Ellie se encanta e se comunica através dela. Essa dinâmica pode ser percebida desde a 1ª temporada, mas agora, com a personagem aos 19 anos e emancipada do pai adotivo, ganha outra escala.

Ainda que Joel insista que não, Ellie convence Tommy a escalá-la para uma patrulha de reconhecimento. Quando sua personalidade impetuosa se une à indiscrição de Dina, vira uma completa algazarra. Em The Last of Us da HBO, ambas são representadas como adolescentes hiperativas. Sua relação com Jesse (Young Mazino), que é quatro anos mais velho, se torna muito mais protocolar e hierárquica. E assim que encontram um mercado abandonado com infectados, elas ignoram o aviso de Kat (Noah Lamanna), líder do grupo, e entram para eliminá-los.

Diferente do jogo, em que este elemento é mais subtextual, Joel e outros moradores de Jackson enxergam sua relação com Ellie abertamente como de ‘pai e filha’ (Foto: Liane Hentscher/HBO)

Para a dupla, que acumula bem mais experiência que a maioria das garotas da mesma idade, estrangular dois estaladores não passa de entretenimento. Contudo, o quadro muda quando o chão do estabelecimento cede e Ellie acaba presa com um novo tipo de infectado: o espreitador. Presentes desde o primeiro jogo da franquia, mas introduzidos na série somente agora, estas criaturas são dotadas de uma inteligência bestial. Fazem silêncio, se escondem e atacam de ângulos imprevisíveis.

Ellie acaba sendo surpreendida e consegue matar o bicho — não antes de ser mordida uma terceira vez. Não que seja um problema, afinal, ela é imune. O ataque de um infectado significa só mais uma cicatriz e, quem sabe, outra tatuagem para a conta. Em uma tendência autodestrutiva, Ellie usa a imunidade de escudo para se enfiar em situações de risco. Entretanto, Dina não compartilha da sua condição, nem Jesse, nem Joel. Uma hora ou outra, essa postura resultará em danos colaterais — e não parecemos estar muito longe disso.

A direção de Craig Mazin durante a luta com o espreitador no mercado realmente nos faz sentir dentro de um videogame (Foto: Liane Hentscher/HBO)

Mais tarde, já à noite, Joel entra no quarto de Ellie, na garagem de sua própria casa, para saber se ela estará na festa de Ano Novo. Ela responde, mas é distante. Ao canto, junto de um montinho de roupas sujas, está um violão pegando poeira. Joel se aproxima do instrumento, melancólico, e passa os dedos sobre a mariposa entalhada atrás das cordas. A mentira consumiu o relacionamento dos dois e, tal qual o violão — cuja importância será revelada no futuro —, Ellie o abandonou e o renegou.

Nessa enxurrada de atritos, Dina é a luz. O carisma que Merced dá à personagem, enquanto se movimenta e rodopia de um homem a outro na pista da igreja, é de conquistar qualquer um. Jesse, que a namorava até pouco tempo, e Ellie, que secretamente está apaixonada, conversam apoiados ao balcão do bar, divagando sobre como detestam festas. Logo em seguida, Dina intervém, vira o copo de Jesse e puxa sua parceira para dançar uma música lenta.

O título do episódio, Dias Futuros, é nomeado por uma canção da banda Pearl Jam — quebrando as expectativas dos fãs dos jogos, a faixa ainda não chegou a ser tocada (Foto: Liane Hentscher/HBO)

Toda essa sequência mimetiza as cenas do jogo — e, neste caso, não teria porque não. Ao mesmo tempo, Bella Ramsey e Isabela Merced expressam um afeto diferente das personagens no game, mais singelo e desengonçado. Podemos sentir o frio na barriga de Ellie quando Dina aperta o abraço mais forte, perguntando a si mesma se não está interpretando errado as intenções da amiga. E quando o beijo enfim se concretiza, a explosão de euforia e alívio se eleva à décima potência. No entanto, claro, os conflitos humanos não ficaram para trás com o fim do mundo — nem a homofobia.

Não demora para o insuportável do Seth (Robert John Burke) interrompê-las e tentar impor sua própria visão de mundo retrógrada. Mas um olhar emburrado e uma palavra ofensiva são mais que o suficiente para Joel invadir a tela como um raio e expulsar o velho preconceituoso dali. Imediatamente se direcionando à Ellie, preocupado, a jovem devolve uma reação hostil. Sua resposta, “não preciso da porra da sua ajuda”, constrange tanto ele quanto o público, deixando evidente que há mais que uma crise de adolescência cozinhando entre eles. Em cinco anos, muitas coisas podem acontecer, e a série ainda deve se aprofundar em como essa relação se degradou até ali.

Durante a festa de Ano Novo, temos participações especiais de Gustavo Santaolalla, compositor da série e dos jogos, e da banda Crooked Still, que performa as músicas tocadas na cena (Foto: Liane Hentscher/HBO)

Importante ressaltar que, para os videogames, a maior parte do primeiro episódio é praticamente inédito, e os trechos diretamente adaptados somente aparecem do meio para o final da narrativa, em forma de flashbacks. The Last of Us Parte II se inicia no dia seguinte à festa, quando ocorrem os eventos chave da história — e que provavelmente estarão no segundo episódio. Apresentar a 2ª temporada assim pode ser uma alternativa para contornar a estrutura não-linear do jogo e enfatizar as raízes que os personagens firmaram neste intervalo de tempo — e, por consequência, o que eles têm a perder.

Apesar da relativa paz, a ameaça se espreita. Finalizamos Dias Futuros com a imagem de Abby e seu grupo avistando as luzes de Jackson no horizonte da nevasca. E, pouco antes, pudemos observar micélios do fungo cordyceps adentrando a cidade através de tubos velhos de cerâmica. Tudo indica que poderemos testemunhar a derrocada de Jackson — o que nunca foi explorado no material base — e que, portanto, aquele momento será adaptado de forma totalmente diferente no próximo episódio. De um jeito ou de outro, acredite, nenhum de nós está preparado.

Vem aí (Foto: Liane Hentscher/HBO)

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