Afinal, o que vem primeiro, o ovo ou a galinha? As consequências de um ato ou suas motivações? Um círculo vicioso não passa de uma linha reta para aqueles que se encontram dentro de seu arco. Há apenas o que está na sua frente e o que você deixa para trás, as escolhas que você não pode desfazer e aquelas que você gostaria de ter feito. A natureza cruel da tragédia humana é a de que somos apenas capazes de identificá-la em retrospecto. Abrindo com um flashback de uma Seattle no precipício de guerra civil, o quarto episódio da segunda temporada de The Last of Us passa a se aprofundar nos ciclos de violência que se espalham para além dos territórios que suas personagens habitam.
Reprisando seu papel no jogo, Jeffrey Wright dá vida a Isaac Dixon, futuro líder da WLF que aqui é revelado como um ex-sargento da FEDRA que executa seus próprios soldados antes de desertar. Não temos contexto para sua traição além da interpretação grave de Wright, que empresta o peso de sua voz para as poucas falas do personagem nessa interação. Talvez ele tenha tido uma crise de consciência ao longo dos anos ou talvez um único ato tenha sido o suficiente para cessar sua confiança no que restou do governo, mas a verdade é que os motivos dele não importam. Sabemos apenas que eles são justos: vemos na cena anterior seus soldados rindo enquanto chamam os cidadãos de “eleitores”: uma piada para com o fato deles terem perdido o direito de eleger seus governantes.
Não veremos Isaac de novo até a metade do capítulo, numa cena em que ele interroga um membro dos “Cicatrizes” — que se autodenominam Serafitas —, exigindo saber onde vai ser o seu próximo ataque enquanto o tortura brutalmente. Novamente, é a caracterização de Wright que nos informa de seu personagem, dando indícios das mudanças que 11 anos de conflito causaram em sua pessoa. O corte que atravessa sua testa contrasta ironicamente com as cicatrizes aparentemente auto-impostas no rosto do homem aos seus pés (interpretado por Ryan Masson), completamente imune às ameaças de violência de Isaac. Ao final da interação, ele o provoca com a revelação de que cada vez mais de seus soldados se voltam contra a WLF, mas que seus fiéis jamais trocam de lado para se juntar com seus opressores. No fim das contas não importa quem veio primeiro, o ovo ou a galinha: cada um está destinado a se tornar o outro.

Dirigido por Kate Herron (Loki, Sex Education) e escrito por Craig Mazin, Dia Um volta a adaptar os eventos de The Last of Us Parte II, se ancorando no relacionamento entre Ellie (Bella Ramsey) e Dina (Isabela Merced) e tecendo sua narrativa de coming of age dentro do quadro de vingança estabelecido pela obra. Com uma direção que passeia entre a doçura de um romance adolescente até os confins psicóticos da selvageria humana, Herron guia o amadurecimento dos temas da temporada com uma mão confiante. Se no jogo o primeiro dia em Seattle nos dava o espaço para processar a perda de Joel ao nosso próprio ritmo, oferecendo uma seção aberta à exploração, aqui a narrativa é guiada pelo florescer dos sentimentos entre as duas garotas, presas numa negação fútil de afeto que é tão terrivelmente adolescente que por alguns momentos somos capazes de esquecer o apocalipse que as rodeia.
Vários dos segmentos opcionais dessa área dão as caras, como o edifício decorado por arcos-íris dedicados ao orgulho LGBTQIAPN+ e a loja de discos que é palco de uma das interações mais icônicas do videogame, onde uma Ellie tímida e insegura começa a tocar um violão milagrosamente intacto e canta uma versão acústica de Take on Me, do a-ha. Um dos pontos altos da temporada, é uma cena que funciona pela integração dos vocais amadores e até um pouco desafinados de Ramsey com o olhar completamente apaixonado de Merced. Através de seus olhos, é quase como se víssemos uma Ellie completamente diferente, liberta de seus problemas e de todas as tristezas da vida. Após nos apaixonarmos pela personagem na primeira temporada, agora nos apaixonamos pela visão que Dina tem dela, uma visão de um futuro brilhante, mas maculada pelo silêncio que envolve suas emoções no presente.
Não há nada de pequeno nesses momentos, que na experiência original eram optativos e poderiam facilmente ser perdidos, mas que a série sabe serem parte do que os fãs esperam ver da adaptação. Nesse sentido, The Last of Us continua acertando ao não apenas recriar essas cenas, mas ao guiar as nossas expectativas para elas através de outros elementos. Em um mundo onde a adaptação cinematográfica de Minecraft consegue estourar na bilheteria ao simplesmente referenciar memes, é gratificante ver uma adaptação que trata a si mesma com a devida dignidade.

Dia Um é o primeiro episódio da nova temporada em que nossa visão está mais ou menos restrita apenas à perspectiva de Ellie e Dina, com exceção do prólogo de Isaac e sua pequena intervenção no meio da narrativa. Até agora, a maioria dos capítulos da adaptação fizeram bom uso do formato audiovisual para diversificar os ângulos pelos quais enxergamos essa narrativa, mas aqui a direção volta a se aproximar daquela de um videogame, seguindo apenas o caminho de sua protagonista. Tal escolha confere intensidade ao ritmo da história, que agora começa a avançar a passos largos com o primeiro embate da dupla contra os soldados armados da WLF, a introdução do seu conflito com o culto dos Serafitas e a ausência conspícua de Abby (Kaitlyn Dever), o alvo máximo da vingança de Ellie.
Por outro lado, a ausência de outros personagens de Jackson fica mais evidente: qual foi a reação da comunidade à fuga das garotas? No episódio anterior, Seth (Robert John Burke) havia feito alusões a outros simpatizantes da “causa”. Será que a cisão que vimos entre os membros do conselho seria prenúncio de um conflito maior? E qual foi a reação de Tommy (Gabriel Luna) e Jesse (Young Mazino) ao descobrir que Ellie e Dina estavam partindo para um lugar desconhecido em busca de pessoas altamente perigosas? Tudo que sabemos sobre estes personagens nos diz que eles não estariam muito atrás delas. Com três episódios restantes na temporada, é incerto quanto tempo a série vai dedicar a tais questões, mas elas permanecem.

Avançando quase às cegas, as garotas são levadas até a estação de TV, esperando encontrar alguma pista que revele o paradeiro do grupo que matou Joel (Pedro Pascal), mas encontram uma carnificina absoluta, claramente montada como uma mensagem para os lobos. O que diabos há de errado com Seattle? é a pergunta que, vinda de Dina, define o episódio. Não demora para que elas percebam que se inseriram no meio de uma guerra cuja escala elas não poderiam sequer ter imaginado. Pior ainda, para escapar elas são obrigadas a tomar a vida de dois soldados, incitando os outros a persegui-las. Agora não há mais jeito: é matar ou morrer.
As duas são levadas a se esconder no metrô arruinado da cidade e, espelhando uma sequência do jogo, presenciam a WLF ser sobrepujada por um grupo de infectados que pega todos de surpresa. Herron comanda habilmente a execução da cena, que rivaliza até mesmo com o assalto épico às muralhas de Jackson há alguns episódios. O design de som e a fotografia em especial brilham ao forçar suas personagens no espaço apertado de um trem descarrilhado, enquanto são perseguidas por uma horda fúngica sob a luz vermelha dos sinalizadores da WLF. É uma visão quase dantesca do perigo que muitos dos habitantes de Seattle esqueceram que se esconde sob a superfície. Como a aparente evolução do Cordyceps irá complicar o conflito entre as facções, só o tempo dirá.
O clímax do episódio vem inesperadamente no momento em que Ellie instintivamente se coloca para ser mordida no lugar de Dina e acidentalmente a faz acreditar que está infectada. As duas se refugiam em um teatro abandonado e tem uma conversa quase tão tensa quanto à cena anterior. Novamente, Merced é a performer do episódio, transmitindo uma dezena de sentimentos diferentes com seu olhar expressivo. Ela não treme ao apontar a arma para Ellie e, apesar de seu coração partido, vemos uma certeza fria por trás deles: ela estava preparada para ter que matá-la. Um lembrete poderoso de que até mesmo as pessoas mais jovens desse mundo tiveram que fazer escolhas impossíveis antes, e estão preparadas para fazê-las novamente.

Enquanto no jogo a chegada ao teatro representa um ponto de ruptura entre o casal, na série o desenvolvimento de seu relacionamento nos episódios anteriores abre espaço para um tom diferente; aliviada por não ter que se despedir de Ellie, Dina confessa seus maiores segredos e revela tanto sua gravidez quanto seus sentimentos por ela. É uma explosão hormonal que vem devidamente acompanhada de uma cena íntima e reveladora. O sexo, assim como qualquer outro elemento narrativo, é uma chance de ver personagens em seu estado mais vulnerável ou resguardado e, em The Last of Us, é a chance de ver tanto Ellie quanto Dina se abrindo para as possibilidades do futuro. Até mesmo sem o diálogo da manhã seguinte, ficaria evidente que ambas as mulheres almejam algo mais do que apenas um caso.
Kate Herron, mãe dos bissexuais, justifica a atitude esquiva de Dina em episódios anteriores com a revelação de que sua sexualidade foi suprimida pelas palavras duras de sua mãe, uma história infelizmente comum entre membros da comunidade queer. Mesmo depois que as pessoas nos deixam, suas palavras permanecem, para bem ou para mal. À sua maneira, todos os personagens da série lidam com esse fato, e quase todos se deixam ser consumidos por elas. A liberação de Dina dessas amarras é o primeiro indício que temos de que a graça para consigo mesmo é possível nesse universo tão recheado de culpa e ressentimento. Nesse contexto mais otimista, Ellie não se sente traída pela gravidez de Dina, que agora é indubitavelmente um empecilho em sua vingança, mas se anima com o futuro hipotético descrito pela outra garota.
Esse momento calmo e idílico é quebrado por explosões na distância, revelando o novo lugar de embate entre lobos e Serafitas, assim como uma nova pista para o paradeiro de Abby na forma de Nora (Tati Gabrielle), uma das pessoas presentes na tortura de Joel. Vemos o olhar de Ellie processar o caminho até Lakehill, seu olhar se endurecendo e o círculo mais uma vez se torna uma linha reta. Ela oferece à Dina a oportunidade de ficar para trás agora que tudo parece ter mudado, mas ela reforça seu comprometimento com Ellie e a missão. Não há mais como voltar para trás.

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