Poderia ser “Mrs. Dalloway disse que ela mesma iria comprar as flores”. Mas não é. No mundo de Pobres Criaturas, que compartilha a província urbana em ebulição da Literatura de Woolf, há apenas Bella Baxter. Ela, que assume sem pudores os papéis de filha, mãe, noiva e monstra. Desigual, desatenta, desleixada. Focada, astuta e provedora. Resiliente, inventiva e generosa.
A lista de adjetivos e defeitos cresce à medida do longo cabelo preto da boneca-viva de Poor Things, filme que acumula troféus desde que chocou (e venceu) Veneza, passou voando pelo Globo de Ouro e aterrissou magnânimo na lista de indicações ao Oscar 2024, com 11. O diretor é o grego Yorgos Lanthimos, no primeiro roteiro adaptado de sua carreira, e em mais uma parceria com Stone, que aqui desempenha tarefa tripla: é musa, produtora e protagonista.

A história foi escrita pelo escocês Alasdair Gray, quando ele já era velhinho e ainda tinha muito a dizer sobre o status quo do mundo. Publicado nos anos 90, Poor Things desnudava um mundo de mentira feito com problemas de verdade. Na trama, que ganha o tratamento sempre caprichoso do britânico Tony McNamara (de A Favorita e Cruella), um doutor com síndrome de Deus arranca o cérebro de um bebê e o coloca de volta à vida, no corpo da mãe que antes suicidou-se.
O que começa como uma releitura do clássico Frankenstein de Mary Shelley, passa pelas lentes angulares de Lanthimos e logo se transforma numa versão irreal do que Virginia Woolf fez com sua Clarissa Dalloway e, mais à fundo, se esbalda na rítmica e cíclica volta que Jules Verne deu ao mundo em 80 dias. Sem medo de chocar pelo crasso ou pelo uso incessante do sexo como papel de parede provinciano, o filme concentra narrativas e vozes distantes na História, mas próximas no ímpeto.

Lanthimos, concentrado apenas na direção, encontra em McNamara um roteirista que perfeitamente captura a assinatura de seu Cinema, provendo doses esdrúxulas de humor, perversão e desconforto; todos atributos intrínsecos à filmografia do grego, que saiu de seu país natal com o passaporte em forma de estranheza Dente Canino em 2009, filme que o indicou ao Oscar estrangeiro e marcou o primeiro encontro com o autor do livro que originou Pobres Criaturas.
Os quinze anos que separam Dogtooth de Poor Things apontam para o aperfeiçoamento técnico de seu realizador, que ainda adiciona os méritos de Stone na cadeira executiva, tomando as decisões e guiando Bella por um passeio desagradável aos sentidos, mas revelador no que diz. Afinal, da fase embrionária, marcada pelas sílabas moles na boca, a urina que lava as calças e a relação infantil com God (Willem Dafoe), Baxter cresce em duas horas e vinte o percurso da humanidade toda.

Descobrindo o prazer, ela não demora a se emancipar a partir dele. Primeiro, com a ideia de Max McCandles (Ramy Youssef), depois, pelo fascínio na forma do advogado Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo). Esses homens, que cercam-na nas piores intenções, controlam Bella, mandam e desmandam em sua rotina, tomam nota de seu crescimento e sentenciam sua existência completa ao casarão de criações e criaturas.
Ela, que amadurece em velocidade discrepante ao habitat que ocupa, entende aos poucos as regras do jogo. Como Shelley escreveu em “para examinar as causas da vida, precisamos primeiro entender a morte”, Bella compreende o mundo pelos contrastes. Seja vida e morte, riqueza e pobreza, ou até os saltos furiosos que tanto ama, mas não os encontra com o mesmo júbilo longe da virilha de Duncan. Na tentativa e no erro, o filme de Lanthimos investiga a natureza humana e sua raiz feminina, testando os limites e as barreiras impostas às mulheres.
Aterrado numa realidade de faz-de-conta, com céus coloridos e pintados à mão, móveis gigantes e animais híbridos que desafiam as leis divinas. No filme, Dafoe vive em parte Deus e em parte o homem que não crê no divino. Ele é tão médico quanto monstro, e desconstrói o pressuposto e o esperado para o mentor, de maneira que sua trágica existência seja feita de arrotos galácticos, sofrimentos inatos e a certeza de que seu passado, como experimento do próprio pai, sentenciou uma vida de cortes, suturas e sangramentos, sem chance de cicatrização.

Duncan, o homem da lei, enxerga em Bella uma oportunidade de exercitar o mais vil dos comportamentos. Mesquinho e muquirana, Ruffalo se distancia do ideal que o consolidou na higienizada tela de Cinema na última década, colocando na mesa músculos há muito adormecidos em seu arsenal. Para tal, ele não economiza nos garranchos expressivos que contorcem o rosto, nem mesmo na ganância que afoga qualquer resquício de bondade.
Assim, Bella é orbitada por homens que pedem a ela mais do que ela mesma sabe que tem dentro de si. Nesse exercício eterno de descoberta, frustração e adaptação, Stone atua em chaves que apaziguam todos os gostos. Ela tem a fisicalidade de alguém novo a tudo e a todos. Ela tem a fala puxada, as caretas amargas, os olhos que delatam prazer, dor e fascínio. Ela tem a explosão da fúria, a implosão da frustração e o controle da sabedoria.

Os figurinos de Holly Waddington acompanham a jornada, dos grandes aventais avolumados que se despejam por Bella, para depois ornar vestidos robustos e coloridos nas passagens por Portugal e pelo navio e, enfim, as peças mais despojadas e reveladoras, quando firma em Paris o processo de dignificação por meio da labuta e do ganho de bens em troca de um serviço que ela nem desconfiava da existência. No bordel de Swiney (Kathryn Hunter), as paredes e vitrais exibem pênis gigantes, alheios ao olhar de Bella, alguém deslumbrada com a liberdade nascida da distância de Duncan.
Na trilha sonora de Jerskin Fendrix, Poor Things experimenta arranhões e gritos, martelando notas, cordas e teclas à laceração da audição: é tão destoante, criativo e viciante que, numa metáfora visual, é como se a música se esfregasse no ouvido de quem assiste, deixando uma vermelhidão que combina com a fotografia delirante de Robbie Ryan. O trabalho no design de produção de Shona Heath e James Price, realizado em estúdios, pinta os céus e distorce formas, tornando o mundo de Bella uma experiência visual que enche e confunde a tela.
Enche tanto que Lanthimos e o cinematógrafo usam as diversas lentes, aspectos e texturas no auxílio da contação da história. O preto e branco nasce da infância e do período onde God viveu sozinho e feliz no Paraíso. O já esperado olho de peixe (usado em A Favorita na distorção da realeza) desta vez ganha contornos expressionistas e encolhe as emoções e as expectativas dos homens, amedrontados com a partida da mulher.

Na transição entre os capítulos, Pobres Criaturas empresta da Literatura a divisão mais marcante entre os temas e períodos da história, com fôlego até para que, perto da conclusão, a chegada do personagem de Christopher Abbott soe mais como um capricho do diretor do que como uma conclusão necessária ao mundo de Bella. Por que, no fundo, a história se desenrola à simplicidade de uma odisseia de prazeres, prisões, pirocas e provações.
A firula visual ganha contornos sedutores pelo tato dos realizadores. No campo semântico, Yorgos olha com carinho para a monstruosidade e a feiura, traços que muito rimam ao Cinema do mexicano Guillermo del Toro (que, surpresa, está ele mesmo trabalhando em sua versão de Frankenstein). Também muito saliente é a linha tracejada que interliga os antigos esforços do grego.
De Dente Canino, ele resgata a proteção paterna e a manutenção de um mundo de invenções e mentiras. De O Lagosta, sentimos a proliferação da impessoalidade e do desafeto humano. De A Favorita, a sátira palaciana cresce em estatura e abrange um mundo futurista-retrô, steampunk e cubista, provinciano e safado. Lanthimos estende sua voz para a Literatura de Woolf, provando que a Mrs. Baxter também iria sim ela mesma atrás das flores, e, como Verne, não hesitaria em viajar pelo globo em menos de três meses.

O lado universal de uma jornada intrínseca de perdas, ganhos e culto à imagem ainda recai no aspecto queer da leitura do filme. Bella se emancipa dos seus iguais, se esquece das maldades para, lá na frente, contornar os impulsos de temor e culpa. Ela se quebra do molde, e transiciona do que nasceu para o que se tornou. Tudo isso com elegância, revolta, orgulho e estranheza. Com a garra de Emma Stone, sem vergonha, sem reservas e sem medo de dançar descalça, bater num bebê ou tornar-se ciente do sistema que antes a oprimia e hoje, pelo menos no mundo de mentira do Cinema, assiste sua dominação.
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