Dias Perfeitos absorve raios solares e devolve calor humano

Indicado do Japão ao Oscar 2024 de Filme Internacional, Dias Perfeitos transforma em poesia uma rotina invisível

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Não foi do dia para a noite que os banheiros públicos de Tóquio ganharam fama mundial. O responsável pela criação deles, Sou Fujimoto, trabalhou com o time que organizava a parte publicitária das Olímpiadas de 2020; adiado pela pandemia, o evento causou uma nova erupção de ideias: chamar talentos internacionais para colocar o sistema público nas telas do Cinema. 

O alemão Wim Wenders foi contatado com o objetivo de transformar em documentário a rotina de alguns dos trabalhadores que limpam os banheiros, ambientes desenhados de modo que, além de privacidade e conforto, chamam a atenção para o espaço externo que ocupam (um parque, um centro comercial, o que for). O diretor decidiu fazer um filme de ficção. A premissa, porém, se manteve.

Presente na Seleção Oficial de Cannes 2023, Perfect Days deu a Koji Yakusho o troféu de Melhor Ator (Foto: Neon)

Hirayama (Koji Yakusho) é um homem que vive a rotina ideal. Ele acorda sem despertador, iluminado pelos primeiros raios solares do dia. Se arruma, escova os dentes e abastece o pequeno veículo com produtos de limpeza, rodos e esfregões. De casa, ele dirige pela cidade japonesa, executando com precisão e calma seu trabalho.

Dias Perfeitos, portanto, assume uma postura quase não-ficcional no registro deste ato infinito de limpar, lustrar e perfumar. Hirayama, de poucas palavras mas dono de um coração imenso, se importa com cada centímetro da cidade que habita. Para o ajudante mais jovem, ele provê facilitações e não encrenca com atrasos ou com a personalidade agitada do menino. Para os usuários dos banheiros, ele se porta com cautela, praticamente invisível.

Gravado em apenas 17 dias, o roteiro de Dias Perfeitos levou três semanas para ser escrito (Foto: Neon)

O calendário marcado pelas repetições, com direito a leituras noturnas e a paixão pela música norte-americana do século XX, é atravessado quando a sobrinha chega para passar uns dias em sua casa. Absorvida pela cautela de Hirayama, a adolescente acaba se encantando pelas mesmas pequenezas que acalentam o coração dele: a fotografia analógica, as fitas cassetes e até os longos passeios pelo parque, quando sentam e observam as árvores, os pássaros e o vento, após um dia de trabalho.

Wim Wenders gravou Perfect Days em 17 dias e, não falando japonês de forma fluente, se comunicou com Yakusho usando gestos e sinais. O trabalho harmonioso transparece uma completude que ultrapassa as palavras, e é coroado por aparatos técnicos que tornam suave e agradável até o ato de dar descarga na sujeira dos outros.

Diretor de Asas do Desejo e Paris, Texas, Wenders declarou ter se inspirado no trabalho do japonês Yasujirô Ozu para a produção de Dias Perfeitos (Foto: Neon)

O som mundano de uma metrópole ligada pelas luzes artificiais e marcada pela comunidade tecnológica e sempre apressada é captado e transmitido com tamanha complexidade e compaixão. A montagem, departamento de Toni Froschhammer, mescla as repetições com longas tomadas de Hirayama dirigindo, ouvindo o rádio e observando o mundo que o cerca.

Fica implícita na direção de Wenders, um estrangeiro que realiza um filme sobre o Japão, falado na língua que não domina, a ideia de servidão e prisão em uma vida de incessante trabalho e ardor. Koji Yakusho interpreta seu protagonista com tamanha potência de seus menores gestos e reações, tornando Dias Perfeitos uma ficção que abraça resquícios do slow cinemapara abstrair o mundo de fora das telas e telões.

Em 2024, três produções japonesas aparecem na lista do Oscar: Dias Perfeitos em Filme Internacional, O Menino e a Garça em Animação, e Godzilla Minus One em Efeitos Visuais; muito comentado, mas ausente foi o drama Monster (Foto: Neon)

E, embora derivado da ideia de tempo real em ação nas duas horas que compõem a rodagem, Wim Wenders mantém todas as engrenagens em perfeito fluxo e funcionamento, introduzindo no roteiro escrito junto de Takuma Takasaki reflexões inconscientes e pulsantes. Dias Perfeitos navega por temas de um certo desconforto com a realidade vigente, das interações humanas que agregam ao âmago do indivíduo, do cultivo da boa música e da boa companhia. 

Para tal, nem é preciso que a história pregressa do protagonista, detalhada por Wenders em entrevista e entregue a Yakusho antes das gravações, seja sublinhada ou decifrada. Representando o Japão no Oscar 2024, e no lugar-vazio entre as certezas e as ponderações, Dias Perfeitos encontra o espaço ideal para florir. 

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