Um musical sobre uma narcotraficante que passa por cirurgia de redesignação sexual, falado em espanhol e dirigido por um mestre francês. É assim que Emilia Pérez se apresenta ao mundo, com o passaporte carimbado em Cannes na forma de dois prêmios, um conjunto para o quarteto de atrizes e outro para a medalha de bronze na Competição Oficial.
Desinteressado em pesquisar a fundo o país que usa de locação, Jacques Audiard pula sem paraquedas numa fictícia Cidade do México, onde trabalha a advogada frustrada Rita (Zoe Saldaña). Cansada de esgotar as forças para que outros ganhem os créditos, ela dança pelo tribunal e canta sobre o estado mental em frangalhos. A câmera de Paul Guilhaume se esbalda nos ângulos, luzes e nos movimentos, seguindo a atriz de forma a registrar o cântico seco.
Abordada por Manitas Del Monte, chefe do tráfico que procura uma saída dessa vida, Rita estranha o pedido, mas não hesita em pular em voos de longuíssima duração para atender os desejos de quem a contrata. Em Bangkok, canta sobre cirurgias que vão do pênis à vagina, de homem para mulher. Em Tel Aviv, ouve de um doutor que o procedimento não cura a mente, apenas o corpo.
Processos burocráticos se acumulam até que, na mesa do hospital e enfaixada por bandagens e gazes que estancam o inchaço e a vermelhidão, está Emilia Pérez (Karla Sofia Gascón). Quatro anos se passam: Rita conseguiu abrir uma empresa e se firmar no mercado internacional, até que é novamente, e sem avisos, cooptada pela antiga empregadora.
Desta vez, o pedido é inverso: Emilia quer retomar o contato com os filhos e a esposa Jessi (Selena Gomez). Já que Manitas foi declarado morto e a família se mudou para a Suíça, ela não será nada além de uma prima distante. No roteiro que Audiard escreve em colaboração com outros três profissionais e baseado num capítulo literário que o diretor leu sobre um senhor das drogas que queria uma mudança de vida, os temas vão do maluco ao estapafúrdio.
No recheio, as personagens cantam, em sussurro, pigarreio e clamor, os sentimentos que poluem a própria cabeça. Enquanto Emilia pena para encontrar um novo propósito de vida, característica que o filme carrega na mesma veia, sem saber qual trama acompanhar ou como ritmar as duas horas de duração, Rita se enxerga como peão de batalha.
Imbuída a trazer justiça aos familiares dos milhões de desaparecidos no México, a dupla funda uma Organização Não-Governamental e usa as conexões passadas da protagonista para sanar a dúvida e o luto de mães, irmãs, esposas e filhas. Audiard, atirando para todos os lados, reserva atenção para que Jessi se apaixone por um cara barra pesada (Edgar Ramírez), assim como estende a Emilia a oportunidade de conhecer e enamorar uma habilmente batizada Epifania (Adriana Paz).
E se a narrativa causa estranheza pelo fator humorístico por acidente, as músicas que compõem a trilha de Camille e Clément Ducol são tão singulares quanto. Em Mi Camino, o carro-chefe da campanha pelos prêmios de Canção Original, Gomez posa e declara a vontade de seguir sem obrigações. Saldana, no primeiro papel que aparece sem maquiagem azul ou verde em anos, é a co-protagonista relegada ao posto de coadjuvante, e por isso domina a tela e conquista reações engajadas, especialmente na constrangedora performance de El Mal.
Mas o show, e o holofote, é todo de Gascón, no primeiro filme que protagoniza desde que realizou a transição de gênero. Sua encarnação de Manitas, sob camadas de maquiagem e próteses, inspira o encarceramento que sente, assim como o terror que propagou na função de chefe do crime. Quando acorda como Emilia, a atriz é apaixonante e voraz, lutando contra ideais que antes eram seu ganho-pão – pena que Audiard preencha sua aura com questões subdesenvolvidas, rasas e que destoam do talento da atriz.
Objeto de inflamação nas redes sociais, onde vai incendiar e carbonizar em discussões até o fim da temporada de premiações, Emilia Pérez já ganhou o cargo de candidato divisivo entre os espectadores. Cabe a quem assiste decidir de qual lado do cabo de guerra vai se posicionar. Vale, mais do que qualquer coisa, ler sobre o musical pelas palavras de pessoas trans, que recebem protagonismo inédito em uma obra apartada de rótulos ou estribeiras.
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