Six Feet Under: a 4ª temporada desenterra velhos comportamentos

Penúltimo ano do drama familiar cava fundo na humanidade falha dos protagonistas

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Para uma família que convive com a morte, as tragédias precisam ser mais do que devastadoras para causar qualquer rachadura. O início da 4ª temporada de Six Feet Under cai exatamente nesse buraco, com o funeral de Lisa e a pequena desavença quanto ao enterro. Nate (Peter Krause) quer honrar o desejo da esposa, enterrando-a sem os trâmites de um cemitério. Os pais e irmã dela, por outro lado, optam pela cremação.

O que causa certa dúvida, já que Falling into Place começa mostrando uma morte ocorrida em meados de 1970. A resposta vem na conclusão do capítulo, quando Nate usa as cinzas esquecidas do tal falecido e embrulha de presente para a família da mulher. Uma pequena mentira que atormenta o personagem até a chocante revelação, onze episódios depois.

Keith diz a David: “Sinto como se estivesse comendo este bolo há 12 meses”; o final da s3 a foi ao ar em 1º de junho de 2003, quando ele começou a comer o bolo o começo da s4 foi ao ar em 13 de junho de 2004 e continuou de onde o último parou, mostrando o ex-policial ainda comendo o mesmo bolo, aproximadamente 12 meses depois (Foto: HBO)

Cada vez mais à vontade na tarefa de desvendar a humanidade dos personagens, a criação de Alan Ball entende e encontra qual o terreno ideal para usufruir das tramas individuais e das coletivas. Exemplo disso é a fantástica sequência da fogueira no quintal, que fecha Parallel Play ao som de Lucky, do Radiohead. Mãe, esposo e filhos reunidos para assistir às chamas crepitarem ao redor dos objetos do passado.

É catártico e esperançoso, na mesma medida que representa uma etapa nova da vida dos personagens. E, tratando-se de um drama enviesado pelos sentimentos contrastantes de culpa e perdão, Six Feet Under coloca os Fisher e cia para repetirem ciclos, padrões de comportamento e até reflexos involuntários de suas criações e vivências. Não estão num jogo, com fases a serem avançadas e novas habilidades e poderes adquiridos.

Com a popularidade da série, foram várias as participações especiais: Ellen DeGeneres como ela mesma, Anna Gunn (de Breaking Bad) como a peguete do Nate, Diane Delano (de Glee) e Lana Parrilla (de Once Upon a Time), no abrigo de cães e Joel McKinnon Miller (o Scully de B99) como um dos nerds de luto [Foto: HBO]

David (Michael C. Hall) está vivendo uma realidade tão boa que parece irreal, e num rompante de boa vontade, oferece ajuda a um estranho que torna-se um perigoso sequestrador. As raízes da série que, embora mórbida, nunca se entrega à violência, são arrancadas sem aviso. E em That’s My Dog, o espectador teme pela vida, segurança e futuro do protagonista.

Sua saúde mental entra em foco, com David sofrendo ataques de pânico e parando de viver sua rotina comum. Keith (Mathew St. Patrick) precisa desistir do trabalho de segurança de celebridades e volta para casa, encontrando o companheiro em cacos. Mas a série extrai tudo que pode das mudanças de cenário. Keith se junta a uma firma que tem Javier (Bobby Cannavale) como parceiro e Celeste (Michelle Trachtenberg) como cliente.

Estrela pop que emula os comportamentos e retrato midiático de Britney Spears, a personagem apareceu pouco, mas tirou Kieth do sério – e, mais tarde, tirou até as roupas dele. A notícia da morte de Trachtenberg, na última semana de fevereiro, tomou conta das redes sociais, com lamentos e memórias. Conhecida pelos trabalhos em Buffy, Mistérios da Carne e Gossip Girl, a diva abrilhantou, também, Six Feet Under.

Entre os temores de David, ele alucina com a possibilidade de Keith, após transar com Celeste, passar a se atrair por mulheres e abandoná-lo (Foto: HBO)

Quando as questões de intimidade e confiança deixam de ser um problema para o casal, que acordou um relacionamento aberto e livre de culpa, o roteiro despenca um piano em forma de trauma em David. Trauma esse que ele reluta em dividir com a família, e só desabafa com Claire (Lauren Ambrose) no limite do próprio bem-estar. Ela, tão atenta e tão atenciosa ao irmão, organiza um plano e um porto seguro para ele.

Destaque cômico da temporada, a artista muda-se para a casa da garagem quando Nate volta para o antigo quarto, e abre espaço para um núcleo jovem adulto que habita a faculdade para além dos clichês calouros. A amiga Anita (Sprague Grayden) torna-se personagem regular, assim como seu eventual romance com Russell (Ben Foster), para quem Claire conta do aborto e recebe um golpe de vergonha.

Michael C. Hall conjura os futuros trejeitos de Dexter quando briga com um otário no balcão do restaurante, e depois retorna ao habitual timbre manso para debater questões da época, como o casamento gay e a adoção de crianças por pais homossexuais (Foto: HBO)

Igualmente vital para o desenvolvimento da trama paralela, a chegada de Jimmy (Peter Facinelli, o Carlisle de Crepúsculo em sua versão twink) e de Edie (a sensual e misteriosa Mena Suvari) é o que aciona a fagulha criativa de Claire. Em dúvidas sobre a própria sexualidade, divide com Edie um arco de descoberta, paixão e incertezas, no que configura-se como um retrato ultra despojado do florescer adolescente. 

Não dá em nada, como a ruiva sofre em admitir. Mas ela não se dá por vencida e tende a explorar o prazer com Jimmy, quemói seu milho e proporciona o primeiro orgasmo da vida de Claire. Resoluta e direta quanto à arte que deseja e consegue produzir, ela monta uma exibição chique e pronunciada pela potência das fotografias, que unem colagem em espécie de máscara das pessoas. Sem título, como ela define e a série nomeia o último episódio, as incertezas tornam-se menores.

No maior suco dos anos 2000, Keith troca de emprego e vira segurança de celebridades para uma empresa que atende Cameron Diaz, Michael Jackson, Michael Jordan e Mick Jagger e até P-Diddy (Foto: HBO)

E com isso, volta à cena Billy (Jeremy Sisto), irmão de Brenda que, agora medicado – e muito mais atraente – assume como substituto de uma das aulas de Claire. Aos poucos, eles se aproximam e até dividem um beijo na season finale. O futuro dirá as consequências de tais atos. Diferente de Rico (Freddy Rodríguez), que mantém contato com Sophia (Idalis de Leon), a dançarina de boate com quem fez sexo oral no passado.

Os encontros, estritamente platônicos, bagunçam a agenda, a percepção e o casamento do agente funerário. A bomba explode quando Vanessa (Justina Machado) desconfia e investiga. O resultado, datado em certa rivalidade feminina, acaba no divórcio do casal. A princípio agressivo e cabeça-dura, Rico demora a temporada toda em um processo de aceitar o inevitável e aprender a conviver com ele.

A 4ª temporada de Six Feet Under encara o abismo do ocasionalmente ingrato trabalho funerário e questiona: é possível mudar a nossa natureza?

Isso acontece justamente pelos inúmeros corpos que chegam na funerária e acionam as mais diversas epifanias nos donos do estabelecimento. As mortes ganham contornos surreais na quarta temporada, que evoca uma fagulha de Premonição na abertura dos episódios. De tudo um pouco: uma cristã fervorosa que enxerga anjos e corre em direção ao trânsito; uma garota travessa que passa trote e tem um troço; uma idosa que negligencia os resultados médicos; uma família vitimada na estrada; e até um benfeitor que acaba dilacerado pelo elevador.

Um dos focos do roteiro, porém, é na jornada de David, que recebe o funeral do pai da ex-noiva. O homem, morto ao ser atingido por um raio, desperta na filha uma porção de questões quanto ao passado. David aceita a rajada de culpa, mas reafirma: além de enganá-la com a falsa heterossexualidade, ele estava, sobretudo, mentindo para si mesmo.

“O terror começa em casa”, define Claire no que se prova um dos princípios de fundamento na série: sua criação influencia as ações futuras (Foto: HBO)

Brenda (Rachel Griffiths) entende do sentimento: quando a relação com Joe (Justin Theroux) alcança níveis de confiança e liberdade, ela retoma velhos hábitos e mergulha no poço. Drogas e sexo são a resposta imediata, seguidas pela reconciliação e o início de uma nova fase. Cursando a mesma Psicologia que fez dos pais agentes ativos de sua traumática infância, ela retoma os laços com Nate e oferece a segurança que era tão incerta no passado.

O casal, que cria Maya em uma casa repleta de afeto, mostra que Six Feet Under não tenta resolver todos os conflitos com um arco-íris no fim do caminho, mas alguns destinos são mesmo laceados por alguém mais forte – e mais entendido – do que nós. Caso do casamento-relâmpago de Ruth (Frances Conroy) e George (James Cromwell), que dá frutos benéficos e venenosos. 

A série pulou a janela do Emmy 2004 e só concorreu no ano seguinte, acumulando três menções técnicas e apenas 2 principais: Melhor Drama e Melhor Atriz para Frances Conroy; no Sindicato dos Atores, o elenco foi lembrado, mas não premiado, na categoria principal (Foto: HBO)

Para cada surpresa que a nova realidade expõe para a dupla, de uma obsessão por pedras do marido e de certo controle da esposa, eles navegam pelos dias com sapos engolidos – um atrás do outro. A coisa fica feia quando, na caixa de correio, pacotes com fezes são recebidos e ignorados (na parte dele). Ruth acusa Arthur (Rainn Wilson, que se despede da série no terceiro episódio), só para descobrir a origem familiar dos excrementos.

Distante do filho Kyle (James Waterston), George pena para atender aos pedidos de Ruth e contatar o rapaz. Dessa rachadura, Six Feet Under puxa uma avalanche de problemas matrimoniais. Ela distrai a mente na pequena participação de Sarah (Patricia Clarkson) e Bettina (Kathy Bates). Com a irmã, troca confidências antigas e questiona uma vida inteira de supressões. Com a amiga, embarca para o México e respira um ar poluído, mas repleto de sabedoria.

Frances Conroy escolheu o episódio 8, Coming and Going, como sua submissão ao prêmio de Melhor Atriz em Drama do Emmy 2005; na ocasião, a Academia escolheu Patricia Arquette, em Medium (Foto: HBO)

No retorno à casa, deixada ao relento dos filhos e do marido, Ruth ensaia um novo modo de enxergar as coisas – menos temerosa quanto ao passado mulherengo dele. Pena que George, engatilhado por uma questão de sobrevivência em caso de apocalipse, se feche no bunker anti-bombas dos Fisher e fique lá, sem noção dos seus arredores. Preocupação e tanta para Ruth, que passa pela quarta temporada com um par de menções a possíveis problemas de memória. 

Semeando tramas que estarão em plena forma na quinta e última temporada, Alan Ball retrocede o controle e deixa que outros diretores e roteiristas tomem a dianteira. O criador dirige apenas 1 dos 12 capítulos: em Can I Come Up Now?, ele reverbera a familiar sensação de déjà vu que o amadurecimento carrega. E em Untitled, a season finale, ele dirige uma sucessão de sustos para seus personagens.

Embora proeminente na narrativa, Richard Jenkins aparece em apenas 3 dos 12 episódios da quarta temporada (Foto: HBO)

No limiar entre o ontem e o amanhã, a série coloca David para encarar o sequestrador (Michael Weston) que tanto machucou sua alma; põe Claire em cheque quanto ao futuro como fotógrafa e que tipos de comportamento ela busca tornar comuns; desafia Ruth no que se prova uma encruzilhada sem respostas fáceis; e posiciona Nate no fim do labirinto.

A conclusão da morte de Lisa, uma pulga que perturbou o personagem de Krause desde o final da terceira temporada, ganha ares de horror na protuberante e direta direção de Ball. Ele guarda o mistério perto do peito, quando as infinitas dúvidas de Nate são respondidas da pior – e mais traumática – maneira possível. É o choque acendido pelo sequestro de David e potencializado pelos riscos corridos. Mas Nathaniel Sr. (Richard Jenkins) define melhor: a vida é muito grande comparada à pequena dor de agora. 

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