Pecadores é um filme milagroso. Conseguiu intercalar uma narrativa intrinsecamente original com a mitologia de uma espécie obscura, tudo isso enquanto fala de ancestralidade, memória e conquista todas as demografias da audiência. Depois de estabelecer-se como um bom contador de narrativas consolidadas, Ryan Coogler chega ao apogeu criativo apostando nas próprias ideias.
Para o cineasta que reinventou a clássica tragédia pugilista de Rocky Balboa na figura de Apollo Creed e depois usou a máquina Marvel para encenar os dramas de MLK e Malcolm X em Pantera Negra, Coogler decanta a negritude e a origem do blues numa região desértica de esperanças e prosperidade.

O jovem Sammy (Miles Caton), apelidado de Pastorzinho, enfrenta a posição religiosa do pai como impeditivo para seguir a tão sonhada carreira musical; portanto, a chegada dos primos distantes, os gêmeos Fumaça e Fuligem, muda o panorama do garoto. Com eles, o céu será rasgado e as circunstâncias rotineiras na plantação nunca mais serão as mesmas.
Coogler escala, mais uma vez, o time que caminha junto dele desde os tempos de Fruitvale Station e em diante. O colega de faculdade Ludwig Göransson vibra cada nota musical e estuda as partituras ao lado de artistas dos mais diversos calibres e instrumentos. A diretora de fotografia Autumn Durald Arkapaw dobra e dilata os horizontes, filmando com lentes desafiadoras e capturando, em longas tomadas, o frenesi que a Música desperta.

Pois Pecadores é um musical, além de ser um drama histórico e uma história de amor e tragédia. De volta após anos trabalhando para Al Capone e burlando a Lei Seca, os gêmeos, em performance espelhada de Michael B. Jordan, coletam amizades e rixas antes de chegarem ao inevitável centro do palco: um armazém que duplicará suas funcções e servirá de bar com canções ao vivo e muita bebida para os negros da região.
Daí, o elenco de amplitude e comoção serve aos propósitos de Coogler, que escreve o roteiro sozinho, e coloca a “esquecida” história dos imigrantes chineses no Oeste americano em foco nas interpretações de Li Jun Li e Yao. Também resgata as origens birraciais de Hailee Steinfeld; sua Mary é um lembrete ardente de tudo que um dos gêmeos perdeu quando buscou a liberdade e a emancipação. A parcela restante é preenchida por Wunmi Mosaku, uma mulher de crenças e superstições – e alguém essencial para quando Pecadores virar a chave e brindar o terror com mãos ao alto.

Ao melhor estilo do Cinema pulp que Coogler buscou homenagear, o filme brinca com a expectativa da audiência, e não fossem as revelações dos diversos trailers, a sede de sangue explicitada pelos lábios molhados e olhos vermelhos do irlandês Remmick (Jack O’Connell), ninguém saberia que esta trata-se de uma saga vampiresca. Lembra do choque que Robert Rodriguez provocou no vulgar e irresistível Um Drink no Inferno? Adicione isso ao mix.
Devolvendo o protagonismo negro nas histórias de formação da Música e da mitologia vampiresca, que data dos anos 1810 e veio antes de Bram Stoker, natural da mesma Irlanda que o vilão do filme, desatasse a escrever sobre Drácula e Jonathan Harker. Na mitologia de Pecadores, os monstros compartilham a aversão ao solar, ao sagrado e ao alho. Além, óbvio, de temerem uma afiada estaca de madeira.

A abertura, que se concentra em flashes proféticos de Sammy ensanguentado perante o altar da Igreja, também apresenta as figuras consideradas sagradas por meio dos sons que produzem, ecoam e emanam. A música é tão forte quanto as presas, e também capaz de dilacerar o véu que mantém íntegro o espaço-tempo universal.
Na sequência da imersão – e do encontro do passado idílico, presente delirante e futuro desacelerado -, o filme saúda figuras, instrumentos, barulhos e a magia que a comunidade negra produz desde que o mundo é mundo. A câmera passeia por violões, caixas de som, mesas de DJ e pela guitarra que Sammie arranha como intervenção divina. É poderoso ao ponto de invadir o espaço fora das telas, com o trabalho de Edição e Mixagem de Som roubando o protagonismo e correndo com ele por aí.

É lisérgico e extraterrestre, seguindo à linha todas as demais áreas de Pecadores, um filme que acumula recordes por parte da crítica, das audiências e da demanda monstruosa, e muitíssimo bem-vinda. Burburinhos iniciais de uma campanha na vindoura temporada de premiações passaram de rumor para possibilidade palpável, provando que, independente de gênero ou estilo, filmes fantásticos sobrevivem a alguns meses de falatório e aclamação para, então, consagrar-se campeões.
Deixe um comentário