No âmbito global, o Nobel de Literatura concedido à sul-coreana Han Kang serviu de símbolo para a arte asiática, muito consagrada, é verdade, também pelo prêmio de tradução que a obra da autora recebeu anos atrás. No cenário nacional, livros com temática social no cerne da história saíram premiados em São Paulo, no Oceanos e no Jabuti.
E nos festivais e feiras, o francês Édouard Louis tomou a Flip com a efervescente auto-ficção que outrora vibrou também por Annie Ernaux. Na Bienal de São Paulo, o calor não foi páreo para o sucesso de Raphael Montes e seu novíssimo Uma Família Feliz; a adaptação chegou aos cinemas com Grazi Massafera em papel dramático. A Feira do Livro, também na capital paulista, esquentou com a presença da argentina Camila Sosa Villada, que lançava 3 livros inéditos por aqui.

Mas nenhum lançamento chegou perto do alvoroço causado por Ainda Estou Aqui, romance de Marcelo Rubens Paiva adaptado para os cinemas e representante do Brasil na temporada de prêmios. Originalmente publicado em 2015, o livro reconta as memórias da família, desde a prisão e morte de Rubens Paiva, até a árdua jornada de Eunice, advogada que conviveu com o Alzheimer por 14 anos.
Na ponte entre livro e filme, É Assim que Acaba levou os leitores de Colleen Hoover às bilheterias e as polêmicas; Denis Villeneuve deu cabo de sua adaptação do primeiro livro de Duna e Wicked estourou as expectativas, trazendo para as telonas o livro de Gregory Maguire, famoso na Broadway pela reinvenção do mundo de O Mágico de Oz. Fim, de Fernanda Torres, virou série no Globoplay, enquanto os célebres romances O Reformatório Nickel, Queer e Conclave estrearam no exterior com elogios e fome de troféus.

Em 2024, o falecimento de grandes nomes da literatura trouxe à tona questões pessoais e éticas sobre o fim da vida e o legado, além do luto pela perda de talentos incontestáveis. Antonio Cicero, Alice Munro e Dalton Trevisan, cada um à sua maneira.
A morte aos 79 anos de Antonio Cicero, crítico literário, ensaísta e poeta, membro da Academia Brasileira de Letras e irmão da cantora Marina Lima, foi marcada pela escolha do suicídio assistido na Suíça, após um longo período de sofrimento com o Alzheimer. Em sua carta de despedida, Cicero afirmou: “Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade”.
Sua partida reverberou no cenário literário nacional e encerra a trajetória de um pensador dedicado à literatura e à filosofia, mas também reabre um debate sobre os direitos dos indivíduos sobre seus corpos e mentes e sobre a complexidade de viver com uma doença degenerativa no Brasil.

A canadense Alice Munro, aclamada contista e vencedora do Nobel de Literatura em 2013, também nos deixou em 2024 aos 92 anos, mas sua morte foi acompanhada de uma polêmica levantada por sua filha, que detalhou abusos sofridos na infância pelo padrasto e afirmou que sua mãe, mesmo após descobrir os fatos, optou por continuar com ele. A revelação abalou a imagem quase perfeita de Munro, reverenciada por sua habilidade de capturar a complexidade da experiência humana com uma precisão quase cirúrgica em contos irretocáveis.
Também foi o ano de nos despedirmos do Vampiro de Curitiba. Dalton Trevisan faleceu aos 99 anos, em 9 de dezembro, no seu refúgio curitibano, mas não sem antes fazer uma reviravolta em sua carreira. Após quase 60 anos de parceria com a editora Record, o autor decidiu mudar para a Todavia, que promete lançar sua obra “como você nunca viu”, com os primeiros livros previstos para junho deste ano, mês do seu centenário.

Entre os lançamentos, está prevista uma coletânea de contos ainda sem nome organizada pelo professor Caetano Galindo e pelo diretor Felipe Hirsch. Segundo Cassiano Elek Machado, diretor editorial da Record, a mudança de editora foi um desejo do próprio escritor. “Em respeito à sua decisão, e a esta longa e bonita história em conjunto, liberamos sem contestação obras que estavam ainda sob contrato”, disse Machado à Folha.
A morte de Dalton Trevisan, pouco antes de sua estreia na nova casa editorial, interrompe uma trajetória de reclusão que durou décadas, mas que também reforça seu papel essencial na literatura brasileira, sempre à margem das convenções, desafiando expectativas e conquistando a posteridade no silêncio de sua escolha. Nada mais vampiresco que partir às vésperas do amanhecer em uma nova editora.
O retorno de Sally Rooney
Alguns anos depois da explosão de Normal People, e do lançamento mais modesto de Belo mundo, a irlandesa retorna falando de xadrez e de luto. Troca as protagonistas femininas por um par de irmãos apartados que, ao longo do romance mais extenso da carreira, precisam aprender a comunicar-se entre si. No meio, várias partidas de xadrez, alguns términos, outros inícios e até uma idealização etérea do que significa seguir em frente. Intermezzo culmina os diversos pontos de vista de Rooney, capturados com o caos semântico e a estrutura nada ortodoxa. Leia mais sobre o livro, lançado pela Companhia das Letras, aqui e aqui. – Vitor Evangelista
Camila Sosa Villada em dose tripla
A argentina veio à São Paulo para aquecer uma das noites mais geladas da Feira d’O Livro. O intuito era, enfim, agraciar o público brasileiro, e lançar três livros ainda inéditos. E, embora os poemas de A Namorada de Sandro e o ensaio em A Viagem Inútil sejam mais do que dignos de menção, é o romance Tese sobre uma Domesticação que ganha todos os elogios.
Contando a tragédia de uma atriz trans, casada com um advogado gay e mãe de um filho adotado soropositivo, a história mantém os traços característicos de Villada: o desconforto perante o inevitável, o deslumbre com o amor carnal e a sensibilidade que só ela é capaz de manejar com tamanha brutalidade e paixão. Em breve, será lançado no cinema, onde Villada protagoniza como a atriz sem nome que norteia as breves 200 páginas. Leia mais aqui. – VE

No final do ano, dois exemplares chegam pedindo espaço
Lançados em novembro, os romances Neca e De Onde Eles Vêm compartilham mais do que a casa editorial. As publicações pela Companhia, maior nome do mercado latino-americano, atestam o alcance da escrita de Amara Moira e Jeferson Tenório. Primeiro, ela. No inédito livro escrito inteiramente em bajubá (ou pajubá, você que manda), a língua das bichas, Moira narra encontros sexuais e românticos num monólogo delicioso de ser desvendado.
Escatológico, sinestésico, singular e muito, mas muito engraçado, o romance funciona como entrada da escritora nesse novo patamar, depois de publicar de forma independente seus trabalhos anteriores. Já Tenório, seguindo o sucesso – e a censura – de O Avesso da Pele, mantém a ficção afiada ao visitar a rotina de Joaquim, um dos primeiros alunos a ingressar pelo sistema de cotas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Por sua rotina, dividida entre as aulas de Letras, o namoro com uma garota do bairro e os cuidados com a avó acamada, a escrita de Tenório sufoca o protagonista e o leitor, mostrando na práticas as particularidades que tornaram-se base para a reivindicação de melhores condições para aqueles que necessitam delas. Nunca caindo no pedante ou no excessivamente farsesco, o livro resgata estas vozes abafadas. Leia aqui sobre Neca e aqui sobre De Onde Eles Vêm. – VE
Rita Lee vai à terapia
Antes de morrer, Santa Rita deixou um pedido: que publicassem de forma póstuma O Mito do Mito, mistura de realidade e faz-de-conta onde narra a sessão de terapia com um médico para lá de esquisito. Da escrita voraz e coloquial que transformou as Autobiografias em leituras obrigatórias, Lee repete histórias, oferece novos detalhes e brinca de deduzir quem é o homem sentado à sua frente, no casarão que só recebe os pacientes quando o relógio bate às seis da tarde. Saiu pela Globo Livros e mata um tiquinho da saudade deixada pela diva máxima. Leia mais aqui. – VE

A arte e expressão de ser Marina
Marina: Expressão é uma das graphic novels do selo Graphic MSP, uma iniciativa da Mauricio de Sousa Produções que traz releituras contemporâneas de seus personagens clássicos por artistas brasileiros.
Criada por Suelen Willrich, ela apresenta Marina, conhecida no universo da Turma da Mônica como uma talentosa artista e filha de um desenhista, em uma história mais intimista e madura. Aqui, o foco é no processo criativo e nos desafios emocionais que a personagem enfrenta na arte, enquanto busca encontrar sua própria voz e estilo. A narrativa combina elementos de autodescoberta, medo e obstáculos que vão além das telas com a sensibilidade característica do projeto.
O estilo visual é impressionante, com um traço que reflete o tema central da história: a arte. Cada página da graphic novel é cuidadosamente trabalhada, contribuindo para a imersão no universo da personagem. Além de ser um guia delicado para crianças e jovens, ajudando-os a normalizar sentimentos de incerteza e insegurança, a obra também é um presente reconfortante para fãs mais velhos, que já enfrentaram essas situações sem o acolhimento de uma narrativa tão leve e sensível (o famoso “quentinho no coração”). – Júlia Paes de Arruda

A mágica macabra de Percival Everett
Desde a adaptação de Erasure (2001) para o premiado Ficção Americana, vencedor do Oscar de Melhor Roteiro Adaptado, Percival Everett tem vivido entre o mainstream e o subversivo. Publicando desde os anos 1980, foi somente recentemente que seu nome furou a bolha literária: há algumas semanas, sua releitura audaciosa de Mark Twain venceu o National Book Award.
Mas em As árvores, livro de 2021 que chegou ao Brasil em 2024 pela editora Todavia, sob tradução de André Czarnobai, Everett se consolida como um ilusionista de primeira. Na pequena, pacata e racista Money, no sul dos Estados Unidos, uma sequência de assassinatos brutais balança a normalidade – em cada cena do crime, há um homem negro, aparentemente morto há anos, segurando partes do corpo da vítima. Como o irmão literário de True Detective e Infiltrado na Klan (2018), As árvores rompe com o óbvio – é um suspense ou uma sátira? –, cujo truque é ser tão real que nos faz esquecer que estamos brincando num jogo ficcional. – Bruno Andrade
O tom de Tom Jobim
Mais do que um retrato: O Ouvidor do Brasil é uma biografia de Tom Jobim em um formato pouco convencional. A reunião das 99 crônicas de Ruy Castro, originalmente publicados na imprensa, dão o tom do que foi Tom: compositor genial, símbolo da bossa nova, mas principalmente um amante inveterado do Brasil, cuja vida e obra se entrelaçam aos sonhos e contradições do país.
Ruy Castro articula o pessoal e o cultural, revelando momentos íntimos de Tom – suas obsessões musicais, seu humor cortante e até sua habilidade de “piar” como os pássaros – enquanto nos transporta para um Brasil que venera seu gênio criador, mas luta para compreender sua própria identidade. Ao retratar o artista cuja obra é marcada pela voz, Ruy nos mostra que a maior qualidade de Tom foi, acima de tudo, ouvir os sons que se escondem pelo país. – BA
Roberto Bolaño deixa um testamento
Às vésperas de sua internação em 2003 – que viria a marcar não apenas o fim de sua vida, mas uma espécie silenciosa de apoteose –, Roberto Bolaño entregou à editora um disquete; nele estava O Gaúcho Insofrível, seu testamento literário – ou carta de despedida para o ato de narrar. Cinco textos de ficção e duas conferências compõem o livro, traduzido por Joca Reiners Terron. Talvez mais consciente de sua mortalidade do que nunca, Bolaño joga com a ideia de morte em toda a obra: desde Jim, conto que abre a coletânea e descreve um gringo perdido no México – e talvez perdido dentro de si mesmo –, até Os Mitos de Cthulhu, conferência que fecha o livro na qual Bolaño reflete sobre a mediocridade do público e dos autores de seu tempo. Os textos mantém o que há de melhor na obra do escritor chileno, oscilando entre o épico e o banal, mas com um magnetismo irresistível da prosa. Em todo O Gaúcho Insofrível o que se sente é a pressão do tempo, da morte, do desaparecimento – e, ainda assim, a energia quase alucinatória de quem, mesmo consciente do seu fim, não consegue parar de escrever. – BA

É tudo verdade
O lendário e incompleto It’s All True, documentário que Orson Welles começou a gravar no Brasil em 1942 e nunca terminou, foi um mistério por muito tempo. Aos 26 anos, Welles desembarcou no Rio de Janeiro já como gênio, logo após o lançamento e repercussão de Cidadão Kane (1941), para dirigir um filme sob encomenda, parte da “Política da Boa Vizinhança” dos Estados Unidos em plena Segunda Guerra Mundial. Mas o que deveria ser um filme-propaganda se transformou em algo muito maior – tão grande que não pôde ser concluído: uma exploração das culturas latino-americanas, híbrido de ficção e documentário, e uma das tantas tentativas ambiciosas de Welles de redefinir a linguagem do cinema. Depois, os inevitáveis tropeços: mudanças na liderança do estúdio em Los Angeles, o interesse político dos EUA se deslocando após o Brasil declarar apoio na guerra e a consequente falta de suporte financeiro. O filme, então, é abandonado, e por quatro décadas seus rolos literalmente acumularam poeira até serem encontrados em 1985, num depósito da Paramount.
É a partir desse emaranhado de ambições frustradas e possibilidades interrompidas que Catherine L. Benamou constrói It’s All True: A Odisseia Pan-Americana de Orson Welles. Em vez de tratar o filme como uma nota de rodapé na carreira de Welles, Benamou apresenta uma análise rigorosa que o posiciona como peça central na evolução da linguagem cinematográfica. Sua pesquisa de tese de doutorado – que durou 10 anos, de 1987 até a publicação do livro nos EUA, em 2007 – ilumina o modo como It’s All True reflete as tensões de Welles entre arte e política, e entre o cinema como narrativa e documento. O extenso levantamento, reunido em um texto claro e interessante, explora o impacto de Welles ao tentar se engajar com as complexidades da América Latina, e registra uma contribuição tardia aos estudos cinematográficos no Brasil. – BA
Carrère e os ecos de uma sexta-feira 13
Poucas coisas podem ser tão hipnotizantes e insuportáveis ao mesmo tempo quanto um julgamento judicial, e Emmanuel Carrère entende isso muito bem. Em V13, a reconstrução dos atentados terroristas que devastaram Paris em 13 de novembro de 2015 é tão rigorosa quanto envolvente – e não menos dolorosa. Naquela sexta-feira – ou vendredi, em francês –, mais de 130 pessoas foram mortas em ataques simultâneos no Stade de France, no movimentado Café Le Carillon e na casa de shows Bataclan, onde o Eagles of Death Metal se apresentava. A narrativa de Carrère mergulha de cabeça nesse trauma coletivo, equilibrando o distanciamento e a empatia que dedica às histórias individuais das vítimas e ao sombrio magnetismo do único sobrevivente entre os terroristas, Salah Abdeslam.
O julgamento, iniciado em 2022, durou quase dez meses, e Carrère esteve lá quase todos os dias, fazendo anotações em um caderno para depois redigir as crônicas semanais que publicou na revista Le Nouvel Observateur. O desejo de cobrir o julgamento partiu dele, que procurou o editor-chefe da L’Obs – mas não como uma decisão casual: em 1996, reportagens para a mesma revista deram origem a O Adversário (2000), sua investigação seminal sobre o assassino que mentiu a vida inteira. Vinte anos depois, esse estilo é refinado em V13, transformando as crônicas em capítulos de um retrato abrangente do tribunal que tentava não apenas punir os responsáveis, mas também dar uma resposta à sociedade francesa a algo a princípio incompreensível. Carrère se debruça sobre as vítimas, os réus e a corte, e transforma tudo em um mosaico de humanidade. – BA

A Lispector perdida
O ano de 2024 nos trouxe de volta a oportunidade de redescobrir a literatura de Elisa Lispector – sim, a irmã um tanto desconhecida de Clarice, o principal nome feminino da literatura brasileira. Fora das prateleiras por mais de 20 anos, sua principal obra, No Exílio, foi relançada em uma cuidadosa edição da José Olympio, em abril do ano passado. Publicado originalmente em 1948, o romance autobiográfico revisita as memórias da família ucraniana que desembarcou em Maceió em 1922, buscando refúgio da perseguição aos judeus que devastou seu país no início do século XX.
Profundamente marcada pela morte precoce da mãe e pela violência, miséria e vulnerabilidade da migração, a primogênita deixou de ser criança muito cedo para assumir responsabilidades familiares, principalmente no cuidado com as irmãs. Assim, o gosto de Elisa pela vida é bem mais amargo e cria uma escrita bem mais enxuta, embora não menos reflexiva quando (ainda que indevidamente) comparada com a de Clarice. Diferente da abstração filosófica e verborrágica da Lispector-do-meio, a autora é essencialmente marcada pela dura realidade que viu e viveu, o que cria uma linguagem objetiva, inconformada e profundamente sensível.
Além da narrativa, a experiência de No Exílio tem o mérito de permitir uma aproximação com a autora que ainda vive injustamente à sombra, um contraste evidente com a relevância de sua trajetória: pouco mais de dez anos depois de sua chegada ao Brasil, Elisa reestruturou o lar de sua família no Rio de Janeiro (berço criativo de Clarice), exercendo posições de destaque em diversos cargos de governo e, posteriormente, como jornalista e finalmente escritora. Trazendo ainda um prefácio de Benjamin Moser, biógrafo de Clarice, o livro posiciona Elisa como uma autora ímpar em meio aos seus conterrâneos e com uma narrativa corajosa e atemporal, que nunca foge dos aspectos pontiagudos de alguns acontecimentos que até hoje impactam a nossa realidade. – Raquel Dutra

As margens no centro
“Nós gatas já nascemos pobres, porém, já nascemos livres”, parece entoar como trilha sonora o livro de estreia de Arelis Uribe, finalmente publicado no Brasil em 2024 pela editora Bazar do Tempo. É que aos olhos da premiada autora e professora chilena, o contexto das mulheres de classes populares do país nos anos 90 é um universo de pílulas preciosas de reconhecimento e identificação. Em As Vira-Latas, Uribe assume um papel de cronista extra-oficial de uma geração de garotas que se formaram às margens latino-americanas, com oito contos que abordam descobertas de amadurecimento, conflitos de amizades, relacionamentos, família e carreira. Sem moralismos e com muita ternura e honestidade, a autora nos captura com personagens imperfeitas, livres, cativantes e persistentes em meio a um cenário muito particular, e muito universal.
Com intenções semelhantes, o premiado romance de Claire Keegan, Pequenas Coisas Como Estas, também aterrissou no país – junto de sua belíssima adaptação cinematográfica – pela editora Relicário. Aqui, no entanto, o clima é diferente: estamos no inverno da Irlanda de uma década anterior, junto de Bill Furlong, um respeitável comerciante local que passa a enfrentar alguns dilemas morais e religiosos referentes à maneira como sua comunidade, marcada pelo poder da Igreja Católica, trata suas jovens mulheres. Ambas as histórias oferecem perspectivas sensíveis sobre experiências femininas em diferentes períodos e contextos, permitindo a identificação de elementos que, feliz e infelizmente, são comuns a todas nós. – RD

Ler sobre escrever
Chega um momento em que o ofício da escrita desgasta até as melhores de nós. Foi esse sentimento que me orientou a algumas das minhas leituras de 2024, com o acalento particular do despretensioso Diário de Asheham, de Virginia Woolf. Como parte do projeto da editora Nós de reedição dos diários da autora, a novidade da vez foi o resgate das anotações que Woolf manteve entre 1917 e 1918, enquanto buscava se recuperar do primeiro de seus mais sérios colapsos emocionais, resguardada em sua casa de campo, na cidade inglesa do título. Iniciado em 1915, logo após a publicação de seu primeiro romance (A Viagem), esse período marcou um momento difícil para Virginia, que viu suas habilidades singulares de escrita profundamente afetadas. De repouso e impedida de escrever por si mesma, seus diários tornaram-se seu único elo com a literatura.
Em Asheham, Woolf descobre que o preço da genialidade é a vulnerabilidade e nos apresenta a uma identidade bem diferente da sua escrita tão grandiosa e memorável. O livro é tomado por descrições de paisagens, animais, refeições e encontros com os amigos, que ancoram Virginia à simplicidade e à materialidade do ordinário, sem deixar o plano de fundo da Primeira Guerra Mundial. O encanto da obra é a experiência de desvendar essa autora tão diferente dos cânones romances modernistas, dos contos exuberantes e dos ensaios afiados. Fica a sensação de que estamos observando uma autora reaprender a escrever.
O método de Woolf é exatamente o que Betina González defende em A Obrigação de Ser Genial. Num conjunto de ensaios, a autora argentina destrincha os preceitos que pesam nas costas das mulheres na literatura, sendo o principal deles, claro, essa necessidade constante de inventividade e de se provar melhor do que si mesma, incansavelmente, livro após livro. Com um olhar crítico que muito lembra a própria Virginia no cânone Um Teto Todo Seu, González oferece mais do que uma análise sobre as pressões de gênero na literatura, trazendo um ponto de apoio e compreensão para nós, as mulheres que desavisadamente assumiram um compromisso de vida com as palavras. – RD
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