A mudança é um fenômeno inerente à condição humana. Nos encontramos em constante metamorfose, à medida que pessoas vêm, vão e os espaços que ocupamos, territoriais ou não, se alteram em velocidade exponencial. É precisamente por isso que cada uma das ‘saídas de aposentadoria’ de Hayao Miyazaki fazem todo o sentido. As obras do autor, tão independentes quanto reativas, dialogam não apenas com o contexto material, mas também com seu próprio estado de espírito.
Seguindo a maré de projetos cada vez mais pessoais instituída por Vidas ao Vento (2013), O Menino e a Garça nasce neste exato prisma e, após 10 anos sem lançamentos do diretor – o maior intervalo até então –, mergulha em direção a uma profundidade quase metafísica. Uma produção que viu no fluxo de consciência e em uma tratamento narrativo surrealista a única maneira de transmitir as ansiedades de uma realidade angustiante. E, ainda que a recepção dividida do público possa intuir que Miyazaki não deveria confiar na sua intuição, são justamente essas características que fazem do filme tão especial ao nosso tempo.
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Estamos na primeira metade do século XX, no Japão da Segunda Guerra Mundial. O ponto focal da história é Mahito, um garoto que perdeu prematuramente sua mãe quando o hospital em que ela estava internada em Tóquio foi incendiado. Dois anos depois, o pai do menino, responsável por uma indústria produtora de aviões de guerra, se casa com sua outrora tia, Natsuko, que ainda por cima está grávida de seu novo irmãozinho. Obrigado a assimilar uma transição radical em sua vida, nosso protagonista se muda para uma suntuosa casa no campo, onde o contato com uma misteriosa garça-real o levará para uma viagem fantástica.
Logo no início, somos apresentados por uma sensação simultânea de familiaridade e estranhamento. Por um lado, não se engana quem identifica em O Menino e a Garça uma amálgama de elementos de outras animações de Miyazaki. As alusões ao passado complicado da família do diretor com a guerra, assim como seu antecessor; a presença de um universo fantasioso, acessado por um portal em nosso próprio mundo, tal qual A Viagem de Chihiro (2001); e a inserção de uma vasta fauna e flora de criaturas fascinantes, que podem ser tanto benevolentes quanto hostis, tal como Nausicaä do Vale do Vento (1984); são algumas semelhanças corretamente identificadas por muitos espectadores.
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Por outro, é impossível não perceber como esses componentes são inseridos a partir de um ponto de vista não só distinto, mas também distorcido em relação a suas referências. Mahito, por exemplo, é estabelecido como contraparte direta da usual protagonista de um longa de Miyazaki. Se Chihiro, Kiki e Nausicaä são garotas carismáticas e espirituosas, que adentram um ambiente corrompido e o transformam por dentro, Mahito é uma criança fria e apática, que assimila-se a essa corrupção ao invés de contrastá-la. O luto o tornou estéril às pessoas ao seu redor, e ele reage à nova rotina com tédio e indiferença.
E é essa rotina que será a bússola da narrativa por quase metade de sua duração. Diferente de outras histórias do Studio Ghibli, em que a magia é introduzida sem cerimônias, O Menino e a Garça apresenta um excerto longo de vida real, em que qualquer resquício de fantasia não passa de piscadelas veladas por um véu de concretude. O longa demora para demonstrar suas verdadeiras intenções e aposta em cenas cotidianas com longos e longos silêncios. Aqui, o Ma (間) faz o trabalho pesado, pavimentando os mistérios da trama através de uma tensão sutil e prendendo nosso olhar pela antecipação de seu alívio.
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Na vigência desse status quo surge a Garça. A relação entre as duas figuras que nomeiam o filme é, desde o princípio, de animosidade. No primeiro passo do garoto em seu novo lar, o elegante pássaro se aproxima e, a partir daí, circunda insistentemente o entorno da casa. A resposta de Mahito é negativa e violenta, a priori ignorando aquela inusual presença, até posteriormente decidir fazer seu próprio arco e flecha e caçar o animal. A tréplica da Garça é igualmente rude, no momento em que revela sua capacidade de falar e demonstra saber o paradeiro da mãe do protagonista, que ainda estaria viva.
Não demora para percebermos que aquela, definitivamente, não é uma garça comum. Conforme ela demonstra suas reais intenções, seu bico se abre de maneira anormal, revelando um grande nariz enrugado e grotescos dentes humanos. Sua voz é rouca e seu discurso traiçoeiro, como se utilizasse o volume de suas penas para esconder uma essência pútrida e potencialmente perversa. Nesse escopo, a Garça se torna uma representação da maioridade em si, demarcando o fim da infância e, ao mesmo tempo, a desmistificação da fase adulta.
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Se a situação já não fosse bizarra o suficiente, a madrasta de Mahito, que busca encarecidamente sua validação, some de forma repentina, mobilizando toda a comunidade para procurá-la. Neste instante, o menino deixa de evitar seus impulsos e finalmente avança à toca proibida da Garça, alegando buscar por Natsuko. Kiriko, uma das senhoras que trabalha no casarão, passa a segui-lo e logo verbaliza as inquietações do espectador: “Você acha que estaria melhor sem ela, não acha?”. Assim como quando machucou a cabeça com uma pedra após brigar com colegas da escola, o filme ratifica que as aspirações do protagonista não são nada mais que egoístas. Ele tem saudades da mãe, claro, mas sobretudo da segurança e estabilidade que ela lhe trazia.
Ao adentrar neste novo mundo, descendemos pela terra. É como se, em um movimento contraditório, o contato com o fantástico colocasse os pés de Mahito no chão. A dualidade entre o extraordinário e o ordinário é explorada em todo o entorno das duas horas de filme. Até a garça, com seu visual exuberante e personalidade irreverente, não foi poupada de ser retratada – em seu estado de maior vulnerabilidade – pela imagem banal de um senhorzinho calvo e narigudo. Esta é a maneira que Miyazaki encontra para comunicar como, ainda que trabalhe no campo da ficção, sua matéria-prima têm como fonte as experiências e emoções mais terrenas possíveis.
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Não é por acaso que o diretor utilize o longa para expressar suas aflições particulares. Entrevistas concedidas por Toshio Suzuki, presidente do Studio Ghibli, revelam que o roteiro inicial de O Menino e a Garça tinha maior enfoque no relacionamento entre Mahito e o Tio-Avô, personagem responsável por criar o universo paralelo em que a aventura acontece. Entretanto, o rumo foi alterado em 2018, após a morte de Isao Takahata, co-fundador do estúdio e amigo do diretor. Takahata, a mente por trás de O Túmulo dos Vagalumes (1988) e O Conto da Princesa Kaguya (2013), era considerado um mentor e principal parceiro de Miyazaki durante seus primeiros passos na indústria de animações japonesas.
Sem que Suzuki sequer precisasse esclarecer – ainda que ele o faça –, esse evento revela as profundas camadas autobiográficas do longa. O Tio-Avô é tanto uma personificação de Takahata quanto Mahito é o reflexo cristalino de Miyazaki. Se o artista usava das protagonistas femininas como palanque de suas perspectivas utópicas, os tons sombrios no retrato de Mahito são espelhos de seus próprios defeitos. Miyazaki é humano, e suas controvérsias como pai e profissional são de conhecimento público. Nesse prisma, O Menino e a Garça é menos um esforço de compreensão do que é uma alçada por redenção de seu autor.
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Fundindo elementos distintos de seus filmes pregressos, a produção de 2023 revisita essas tensões em busca não de uma resolução, mas de entrar em paz com os demônios que tanto o circundam. O Menino e a Garça é definitivamente o fim de um ciclo, não como uma ‘carta de despedida’, mas sim como uma proposta. Miyazaki se vulnerabiliza ao limite ao tornar pública suas meditações sobre as tribulações de viver e os mistérios da morte, expondo seus traumas e ampliando-os para uma reflexão coletiva.
Em sua língua original, o longa carrega o mesmo título de um clássico da literatura infanto-juvenil japonesa: 君たちはどう生きるか (Como Vocês Vivem?), de Genzaburō Yoshino. Publicado em 1937, a obra também é a favorita de Miyazaki, e inspirou inúmeras de suas produções. Ainda que não seja uma adaptação direta do livro, como era anteriormente previsto, o nome sugere um retorno ao passado, um olhar clínico ao eu, para que a mesma pergunta possa ecoar de dentro para fora. Com seus 83 anos, o diretor se coloca no lugar de aprendizado e reavalia fragmentos de sua trajetória em busca de alternativas para o presente.
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Viver não é fácil, e definitivamente não tem sido para Miyazaki. No balanço entre sua pulsão criativa e o fardo do trabalho, ele sempre perdeu o equilíbrio. Afinal, vale a pena abdicar de sua vida pessoal e daqueles que você ama para dedicar-se à Arte? Levando em consideração as diversas aposentadorias seguidas de retornos do autor no período de quase 30 anos, esse parece ser o grande dilema de sua carreira.
Mas o que Hayao Miyazaki aprendeu ao fim da jornada de Mahito é que nada substitui a experiência da vida. De sentir a brisa ao ar livre, de comer sua torrada com geleia favorita ou de construir boas memórias com aqueles que você ama, enquanto ainda há tempo. E nessa filosofia, pouco interessa o legado justificado por uma estatueta dourada e pelos louros de uma indústria opressiva. A maior e mais importante herança que a obra do diretor deixará é uma fagulha eterna de esperança, em nós mesmos e uns aos outros.
Que seja a Arte pela vida, sempre.
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