1015 dias separam o final da primeira temporada de Ruptura do começo da segunda. Tempo mais que suficiente para o drama da Apple TV+ estourar a bolha e angariar uma multidão de fanáticos e frenéticos espectadores, famintos por respostas e por mais mistérios no interior límpido e assustador da empresa Lumon.
A janela larga entre The We We Are e Hello, Ms. Cobel tem na conta as duas greves que assolaram Hollywood e possíveis desavenças na sala dos roteiristas; tudo que é bom leva tempo, e a segunda temporada prova que Severance não é apenas boa, é ótima, com a história pegando no tranco emocional deixado pelas descobertas cabais que há pouco deram choque em personagens e audiência.

A esposa de Mark S. (Adam Scott) está viva e presa no prédio da corporação; a versão externa de Helly R. (Britt Lower) é filha do herdeiro do império; e Irving B. (John Turturro) sabe mais do que se recorda, pintando a esmo quadros que laceram um corredor escuro, guardião de mistérios. Pior para a Lumon, que viu três innies desbravar o mundo real – na noite em que o conselho celebrava o sucesso dos funcionários adeptos à Ruptura.
Quando Mark retorna ao escritório, a perfeição das ações ganha tom soturno. Os antigos colegas sumiram, substituídos por três figuras aéreas aos acontecimentos. A supervisora Harmony Cobel (Patricia Arquette) também desapareceu, dando lugar à promoção de Seth Milchik (Tramell Tillman), agora o responsável pelo andar.

Nem um vídeo institucional em stop-motion e narrado por Keanu Reeves, detalhando os atos heroicos dos innies e sua eventual série de conquistas é o bastante para que Mark sossegue as dúvidas. A Srta. Casey (Dichen Lachman) está, também, fora do baralho, com a vaga de conselheira preenchida por uma intrigante – e tão jovem que causa estranhamento -, Srta. Huang (Sarah Bock).
Na direção estilosa e acinturada de Ben Stiller, o primeiro episódio é todo dentro do escritório, sucedido por Goodbye, Mrs. Selvig, que se concentra no que está acontecendo do lado de fora dos elevadores e salas de recepção. A mensagem “ela está viva” martela na cabeça de Mark, que ziguezagueia sem rumo até que as demandas sejam ouvidas: ele só volta a trabalhar se os antigos parceiros de Coleta de Dados Macros voltem também.

E Severance confirma: cada pedido do funcionário de ouro é uma ordem, já que o plano Cold Harbor depende única e exclusivamente de Mark. Milchik corta a noite gélida da cidadezinha em sua motocicleta e bate de porta em porta, recontratando Irving e Dylan G. (Zack Cherry). Com Helly, a questão é mais complicada.
Britt Lower dedica-se em pequenos gestos e expressões quando infiltra o escritório como Helena na pele de Helly, mudando o olhar, o jeito de falar e até a maneira como caminha e reparte o cabelo. Trabalho tão bem curado que engana quase todos. Quase, pois, como o episódio 4 habilmente revela, Irving não cai em qualquer mazela.

“Helly nunca foi cruel”, declara Turturro, no melhor e mais angustiante momento da temporada. No retiro florestal de Woe’s Hollow, os personagens dormem na mata e encaram histórias de terror envolvendo o fundador Kier Eagan. Para o deleite de Helena, Mark acasala com sua então amada, ao passo que Irving passeia por visões sacramentadas da atmosfera fúnebre do presente.
Ele afoga a mulher, demandando que os superiores tragam Helly de volta. Irving consegue o que quer, mas é desligado da empresa. “Segurem firme”, finaliza o encontro dos colegas, que comparecem a um funeral tropical e depois entendem a esperteza do veterano. Atrás do quadro, está uma carta assinada pelo papai e rabiscada com o tal corredor de ébano que ele desenhava na transe passada.

Quando Helly volta a vida, ela entende a guerra que Helena planejou na trama de infiltração e troca de identidade. É uma rivalidade entre duas mulheres que dividem o mesmo corpo, mas não a mesma existência. Ao assistir as filmagens que mostram a innie beijando Mark e sendo amada de volta, a outtie sofre pela prisão em que nasceu.
O desejo é tamanho para que ela se coloque no centro da ação, transando com alguém que não sabe quem ela verdadeiramente é. É confuso demais ser uma garota e comparar-se às outras, ainda mais se o exercício de inveja e rancor nasce e morre dentro dela mesma.

O amor pode transcender a Ruptura, mas ainda não é o que Irving e Burt (Christopher Walken) precisam. Um jantar que faz frente a um esquisito menage à trois desperta Irving para a natureza do amado, que, na companhia do marido Fields (John Noble), mais confunde do que se explica. Tudo muito bem arquitetado nos cortes entre as expressões dos atores, mantendo uma linha neutra como reação às explosões nas entrelinhas.
No episódio mais curto da série, Cobel viaja à casa da mãe e encontra Sissy (Jane Alexander, de Kramer vs. Kramer), uma fanática pelos ideais da Lumon que acumula mágoas centenárias. No frio dos sets canadenses, Arquette volta à própria infância, quando foi sequestrada pela empresa e, sozinha, desenvolveu o sistema de Ruptura.
Para lidar com a morte da mãe, envenenada pelos gases tóxicos industriais da cidade tomada pela corporação, Cobel criou o mecanismo no formato de chip, roubado e creditado ao patriarca da dinastia Eagan. O plano é nebuloso, como quase tudo de potencial que a série mantém rente ao peito, mas sugere um processo de vida eterna.

Algo que Gemma sofre nos corredores, como bem mostra Chikhai Bardo, estreia na direção da fotógrafa Jessica Lee Gagné. Por uma hora, a vida da mulher é transformada em objeto de estudo e análise para os médicos e enfermeiras do prédio, que testam sua memória, forçam-na a cumprir tarefas repetitivas e repugnantes, e aguardam o fim do projeto Cold Harbor.
Que também é o título do final da temporada. No décimo episódio, todos os elementos culminam no plano suicida dos personagens. Mark, em desempenho fascinante de Scott, conversa consigo mesmo e firma o tratado que libertará a esposa, seja qual for o preço de tal ação. Sua reintegração, amparada pela irmã Devon (Jen Tullock), é objeto de inflexão dramático da temporada, que não perde tempo e nem adia o aguardado ponto de virada do personagem.

No abismo que a Lumon preenche com quadros coloridos e corredores alvos, Mark, Helly e Dylan mais uma vez enfrentam o dragão indestrutível que os machuca sem ver as feridas e o sangue. A fanfarra que Milchik organiza, em contraste à assepsia dos cenários pelos quais Gemma é guiada, cria mais uma das intercalações fantásticas que a direção de Ben Stiller e o roteiro de Dan Erickson planejam.
A câmera volta-se ao filtro analógico que capturou os momentos de paixão entre Mark e a esposa, no mundo real antes de tudo ir pelo ralo, para eternizar a união entre o homem e Helly, de mãos dadas, em direção ao mesmo purgatório que chamam de lar. O amor ocupa os moldes de qualquer moral ou promessa, já que ali, na hora mais decisiva, Adam Scott precisa ele mesmo fragmentar suas emoções e dar cabo de dois destinos: primeiro, salva Gemma, depois, salva a si próprio; e para o Inferno com as consequências.

Deixe um comentário