Em Queer, o desencarno é reflexo e armadura

Luca Guadagnino é metamórfico e sinestésico na crônica de um homem apaixonado pela desilusão

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A obra de William S. Burroughs pouco se assemelha à assinatura do diretor Luca Guadagnino. Para todo o resplendor de desejo que o italiano conjunta em cenas de paixão, o escritor norte-americano opta pelo oposto: o belo, nas palavras, torna-se sujo. O amor, descompaixão e, o desejo, algo que não merece ser alcançado. Em Queer, dois mundos contrários precisam penetrar um no outro.

Lee (Daniel Craig) é um expatriado americano que passa os dias suando na Cidade do México, rodeado por cachorros vira-latas que passeiam nas estradas de terra, esperando por um resto de almoço ou um gole d’água. O mesmo acontece dentro dos bares e restaurantes, onde homens gays suplicam pela atenção e o afeto que os transeuntes podem oferecer por brevíssimos momentos.

Acostumado a acompanhar jovens em seu auge de autoestima e conquistas, Guadagnino agora encara alguém que corre atrás do prejuízo (Foto: MUBI)

O protagonista bebe como camaro, fuma como chaminé e postula uma independência que, sabe, nunca se concretizará. Divide doses com um amigo, o escritor Joe (Jason Schartwzman), em constante transe pelos jovens latinos que conquistam as erupções corporais e roubam-no os mais diversos itens depois da noite de sexo.

Lee é mais cuidadoso: quando transa com um Omar Apollo de prótese dentária (e peniana), leva o jovem a um hotel, onde os perigos se limitam a pouco valor e quase nenhuma preocupação. Para o papel, Craig desloca a persona do alfa que manteve pelos anos de James Bond e retorna ao território lamacento e glorioso do ato de querer em uma parceria inusitada com Guadagnino.

Queer evoca o misticismo de Querelle, na composição física e arquitetônica da Cidade do México, espécie de Ilha de Lesbos para os homens em busca de afeto e atenção (Foto: MUBI)

O sol nasce e se põe todos os dias da mesma maneira, e então chega Allerton (Drew Starkey), misterioso Adônis que fisga a paranoia de Lee e transforma a rotina de rum e cigarro em busca incessante pelo contato. “Quero conversar com você sem abrir a boca”, ele faz graça, alto nas nuvens do ópio. O jovem educadamente recusa a investida.

Até que ele aceita, e a fisicalidade predatória de Lee toma conta de Queer, usando o roteiro adaptado de Justin Kuritzkes de trampolim para os registros e gestos mais animalescos e humanos possíveis. O veterano se fixa na liberdade com que Allerton goza, indo e vindo entre os famintos homossexuais mais velhos que se deliciam com sua juventude em bruto e seu corpo escultural.

Almoço Nu, outro livro de Burroughs, foi adaptado por David Cronenberg em 1991; no Brasil, o filme ganhou o título Mistérios e Paixões (Foto: MUBI)

Allerton, igualmente, passeia pela linha tênue de uma bissexualidade não dita e nem anunciada: com Mary (Andra Ursuta), compartilha as poucas cenas do cerne feminino, quando o filme é mais delicado com a interpretação de Starkey, hipnotizante no plano estático do tailandês Sayombhu Mukdeeprom. Não é surpresa que, no terceiro ato, ele se conecte ao bicho-preguiça que habita a cabana na Amazônia: compartilham a vagarosidade, à espreita de que os demais organismos tomem a iniciativa. 

Lee toma a frente e inicia as discussões e afetos, ao ponto de Allerton negá-lo com veemência e agressividade. “Eu não sou bicha, sou desencarnado, eles confideciam uma porção de vezes. E Luca Guadagnino encara o ato de ser LGBTQIAPN+, rejeitado, deslocado e diferente como o é: em benção e eterna clausura.

Trent Reznor e Atticus Ross repetem a parceria de Rivais e compõe a trilha de Queer, com direito a canção original cantada por Caetano Veloso (Foto: MUBI)

Viver numa realidade que impõe solidão, dita regras de comportamento e que separa o indivíduo do que a sociedade considera aceitável; ser gay nos anos 50, quando Burroughs escreveu o livro e sofreu com a censura, era atestado de uma vida solitária e conturbada, com o trabalho do diretor estendendo a tese para uma discussão contemporânea.

Ser gays nos anos 2020, por outro lado, pinta o amargo retrato espelhado que os personagens insistem em atravessar. O yagé, substância metamórfica cultivada nas florestas tropicais da América do Sul, apenas transforma em físico todos os sintomas psicológicos que Lee ansiou pelos anos que caminhou na árida estrada de sua existência.

Após recepção morna no Festival de Veneza, o filme se mantém na conversa da categoria de Ator, onde Daniel Craig apareceu nas listas do Globo de Ouro, Critics Choice e SAG, mas ficou de fora do Oscar (Foto: MUBI)

Ele quer ter Allerton: furar suas entranhas e aconchegar-se naquela fachada de masculinidade e virilidade. Também quer ser o mais jovem, numa mímica eterna de nostalgia e otimismo. Mais fundo ainda, deseja apagar o preconceito que floresce – melhor seria superá-lo, mas nem Lee enxerga a realidade com óculos tão cor-de-rosa assim.

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