Billie Eilish vive no topo do mundo desde cedo. Em 2020, com apenas 19 anos de idade e um álbum de estúdio, ela já era a cantora mais pesquisada da internet e vencedora mais jovem da trinca de ouro do Grammy (Álbum, Canção e Gravação do Ano). Isso além de ter conquistado uma legião de fãs magnetizada por roupas largas, cabelos coloridos e muita disposição para aloprar da imagem do diabo à paixão que cruza o fim daquela festa cabulosa.
De lá para cá, as nuances de uma trajetória meteórica se aconchegaram em trabalhos curiosos – o LP Happier Than Ever e o EP Guitar Songs – e, como presente, deixaram a porta de entrada aos vinte e poucos anos aberta para Eilish. Um caminho sem pé nem cabeça, que ganhou mapas rascunhados por Lorde, Troye Sivan e dezenas de outros desbravadores que também viam a Música como bússola, mas jamais topou com os exercícios emocionais de uma sagitariana em queda livre. E é em HIT ME HARD AND SOFT que os estilhaços recortam acordes e cutucam órgãos e sintomas, preparando as peças para espelhar fraturas inevitáveis até no organismo de uma popstar.
Batizado por um impulso que une complexidade e contraste, o disco se estiliza em letras maiúsculas de cabo a rabo, prenunciando muito bem a dimensão robusta das performances que a artista compôs e produziu junto do talentoso irmão, Finneas. A repetição da constante parceria não causa nem de longe um efeito parecido ao que vem assombrando Jack Antonoff, – assinatura frequente nos registros de Taylor Swift – porque experimentar os limites do conforto parece ser o principal alimento criativo dos O’Connels.
Na verdade, a intérprete de bad guy agora supera a constância de metáforas que tomou para se autodescobrir e pavimentar sua arte no passado. O medo de potencializar desejos e lamentos ainda pulsa pelas veias de HMHAS, só não existem mais espaços físicos e mentais inacessíveis à caneta de Billie nem tempo para mascarar, pelo bem ou mal, a índole dos sentimentos que a atingem em cheio. “Estou agindo de acordo com minha idade agora?/Eu já estou de saída?/Quando deixo o palco, sou um pássaro em uma gaiola/Sou um cachorro em um canil”, murmura em SKINNY, abertura do álbum que proclama de bate e pronto que a paciência da estadunidense acabou.
O alto teor explícito persiste na prosa de todas as faixas – alinhado à presença marcante da cor azul, desde a capa que mostra Eilish submersa nesse universo à magnífica BLUE, que encerra a coletânea recriando ritmos e citações percebidos durante o play. Esse esforço de sinestesia escala as narrativas e chega ressoando em nossas estruturas ósseas através de uma mixagem quase cirúrgica, que coloca guitarras elétricas, violões, baixos, baterias, violinos e sintetizadores para sangrarem na medida que os desabafos correm e, assim, trabalharem pela frequência cardíaca de HMHAS.
Ao lado do monitor, o protagonismo dos batimentos não poderia ser diferente. Entre seus típicos sussurros, modulações graduais e explosões mais afiadas que nunca, a voz de Billie chora, dança e cresce com os instrumentos, tendo domínio completo do drama que avança pela musicalidade altamente Pop, além de Alternativa, Eletrônica, Orquestral, Rock e mesmo meio Funk (o que serve tanto para o beat familiar de BITTERSUITE quanto para os encantos de CHIHIRO, que levou as referências ao clássico filme de Hayao Miyazaki até uma versão MTG nascida no Brasil).
Nesse clima de vale tudo, a cantora evolui artística e intimamente diante de nossos ouvidos, não buscando uma espécie de iluminação que a tire do mar de sofrimentos mundanos, mas encontrando formas de nadar e sobreviver para além deles. Em WILDFLOWER, ela se torna eco dentro do próprio namoro e sente febre ao idealizar a mente de outra mulher que sofreu pelo mesmo cara, enquanto THE GREATEST carrega tantos vieses vulneráveis e vilanescos para mastigar certas dores que fica difícil definir a sentença moral de Eilish.
Felizmente, o julgamento público nem faz cócegas no ego da artista, que assume sua bissexualidade pela primeira vez nas linhas mais autênticas e divertidas de HMHAS. Tudo começa na barbarizante LUNCH, quando Billie come uma garota no almoço e palita os dentes com a satisfação de enchê-la de promessas e presentes. O ápice, no entanto, se realiza nos delírios avassaladores, apaixonados e obviamente queer de BIRDS OF A FEATHER: “E eu não sei por que estou chorando/Acho que não poderia te amar mais/Talvez isso não dure muito, mas, amor, eu//Vou te amar até o dia em que eu morrer”.
Ao final de 43 minutos, dá para entender porque nenhum single surgiu para promover as façanhas de HMHAS antes do lançamento oficial. Ouvir desmembramentos de uma obra tão conectada em propósito e ciclo sonoro, sem conhecer o corpo e a alma que movimentam tudo isso, seria arriscar o empobrecimento de uma viagem valiosa. Assim, os O’Connels conseguem provar que apenas dez canções dão conta de preencher das baladas aos horários de reflexão se forem pensadas e executadas com a devida honestidade.
Outra vez atestando que a realidade material é pouco para sua alçada, Eilish nos abduz, fascina e vicia em uma galáxia só sua. Inspirado na irreverência de uma artista de carne e osso, que já investigou o não-lugar do sono e o preço da verdadeira felicidade, HIT ME HARD AND SOFT vira deleite coletivo por se contentar com a naturalidade de características humanas que precisam ter todo fôlego possível na juventude e na Música contemporânea. É a súplica do momento.
Mas, enquanto Charli XCX se vira do avesso ao som dos batidões e Ariana Grande desiste de tapar o sol com a peneira, Billie Eilish permanece imprevisível. Sabemos quantos prêmios estão em sua estante e o que ela entende como essencial hoje, e isso basta. O futuro pertence às facetas que a estadunidense ousar explorar – e ao quanto, certamente, continuaremos a ouvir seu nome reverberar pela indústria.
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