Em COWBOY CARTER, Beyoncé reinventa o country à sua própria imagem

Beyoncé, como sempre, está um passo à frente – e talvez seja hora de todos nós acompanharmos o ritmo

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O que significa, afinal, para Beyoncé, entrar para a História? Parece que acumular 88 indicações ao Grammy ao longo de sua carreira não foi o suficiente. Enquanto nos contentamos com migalhas de suas declarações públicas antecipando o lançamento de seu oitavo álbum de estúdio, COWBOY CARTER, amplificadas pelo dilúvio de tweets de fãs ao longo dos últimos meses, parece que a cantora teve tempo de sobra para polir ainda mais o que estava por vir.

Lançado em plena Sexta-feira Santa, no Brasil, o álbum representa uma continuação majestosa do que Beyoncé começou em RENAISSANCE, conduzindo os ouvintes por uma jornada sonora que desafia as expectativas e os convencionalismos. Como o próprio título sugere, trata-se de um álbum country, enriquecido com participações de nomes como Miley Cyrus, Shabooezy, Post Malone, Tanner Adell, Dolly Parton, Linda Martell e vários outros – inclusive uma breve participação especial de sua filha Rumi.

Rumi, filha de Beyoncé, entrou para o ranking da Billboard aos 6 anos com a faixa PROTECTOR e superou o recorde da irmã mais velha Blue Ivy (Foto: Mason Poole)

Em comunicado, a ex-Destiny’s Child confessou que o disco levou mais de 5 anos para ser produzido e tomou todo esse tempo para se desdobrar completamente. Inicialmente destinado a ser lançado antes do caos global se instaurar, COWBOY CARTER teve seu destino transformado pelos eventos sem precedentes que se desenrolaram. Com a pandemia, havia muito peso no mundo“, confessou Beyoncé, reconhecendo a necessidade premente por uma pausa, por um instante de alívio — “Nós precisávamos dançar. Nós merecíamos dançar.

Assim, dois anos depois do lançamento do Renaissance, Beyoncé viu uma oportunidade de retornar às raízes, de se reconectar com a essência da música. Desligando-se dos artifícios digitais que dominam a paisagem contemporânea, ela mergulhou em instrumentos reais e antigos. O resultado? Nada menos que extraordinário. Um álbum que transcende as expectativas, que desafia as convenções e que, nas próprias palavras de Beyoncé, é “o melhor que já fiz na minha vida“.

Pelas informações fornecidas, inclusive, podemos concluir que este começou a ser forjado em 2019, três anos após sua performance icônica no Country Music Awards, onde ela e as Dixie Chicks injetaram uma dose de ousadia na veia da tradicional premiação. Enquanto os puristas torciam o nariz e os fãs tradicionais coçavam a cabeça perplexos, Beyoncé estava já traçando o próximo capítulo de sua evolução artística.

Beyoncé em sua festa anual pós-Oscar, a Gold Party, em campanha para o lançamento do álbum. (Foto: Blair Caldwell)

Em uma era dominada por vídeos de 15 segundos e a efemeridade das tendências do TikTok, a decisão de Beyoncé por uma obra de quase 1 hora e 30 minutos de duração, com um total de 27 faixas, parece ser uma verdadeira afronta à indústria da Música atual. No entanto, quando você escuta o álbum, logo se torna evidente que cada segundo foi essencial para transmitir a mensagem complexa e multifacetada que a cantora deseja compartilhar com o mundo.

Em um só disco, Beyoncé desafia as fronteiras do que é possível na música, misturando e combinando elementos de diferentes gêneros com uma maestria que só ela poderia alcançar. Da majestosa grandiosidade da Opera Country à simplicidade acolhedora do Folk, do pulso pulsante do Pop à batida contundente do Hip Hop, da espiritualidade do Gospel à vibração inegável do Funk, cada faixa é uma experiência única e cativante.

Então, sim, pode ser surpreendente encontrar Funk e Gospel compartilhando espaço em um mesmo álbum, mas quando se trata da Queen B, as únicas regras que importam são aquelas que ela mesma escreve. É uma celebração da diversidade musical, uma afirmação de sua própria versatilidade como artista e, acima de tudo, uma declaração ousada de que a arte não pode ser contida por limites estreitos.

Em Oklahoma, uma rádio country se recusa a tocar nova canção de Beyoncé, mas mudou de ideia após uma campanha de fãs da cantora (Foto: Blair Caldwell)

Ao lado dos produtores do primeiro ato, Renaissance, a cantora não apenas mostra para o que veio, mas também delineia claramente para onde vai. Tudo se inicia com AMERIICAN REQUIEM. Aqui, Mrs. Carter enterra a América com um canto fúnebre e vocais excelentes e, de forma literal, conversa diretamente com a indústria country: “Tem muita falação enquanto eu canto minhas músicas / Consegue me ouvir? / Eu perguntei: Você me ouve?”.

Isso porque, na terra das botas de cowboy e chapéus de rodeio, a indústria country tem sido conhecida por sua falta de diversidade – um segredo tão mal guardado quanto uma melodia de violão ao pôr do sol. Por décadas, artistas negros têm sido relegados a um papel secundário nesse cenário, apesar de suas contribuições significativas para o gênero.

E é isso que Beyoncé, com sua influência e alcance, está tentando reconquistar. Um mundo onde a diversidade é mais do que apenas uma nota de rodapé. Ao adentrar esse território muitas vezes exclusivo, a cantora está desbravando caminhos e desafiando os estereótipos como se fossem feno em um celeiro.

Diferente de seu antecessor, Cowboy Carter veio carregado de visualizers e um marketing gigantesco (Foto: Reprodução/16 Carriages Visualizer)

Quem mais teria a ousadia de convidar ícones como Dolly Parton e Willie Nelson para uma colaboração em uma faixa de transição? A mera ironia desse gesto já valeria o preço do álbum. Para os mais atentos, é um convite à reflexão subliminar – ou será que estamos todos simplesmente perdendo o fio da meada?

E o que dizer do cover de JOLENE? A texana não tem medo de se aventurar e traz Dolly P para uma faixa de mesmo nome e uma comparação entre a personagem e a infame “Becky With The Good Hair”. É uma provocação direta e brilhante que somente Beyoncé seria capaz de conceber. Ela não só honra a original, mas adiciona um toque de modernidade e empoderamento que promete ocupar um lugar de destaque nos anais da Música.

Mas não para por aí. Beyoncé vai além, elevando o clássico dos Beatles, BLACKBIIRD, a novos patamares com a colaboração de Tanner Adell, Britney Spencer, Tiera Kennedy e Reyna Roberts. Uma prova irrefutável de que as vozes negras não apenas pertencem a esse espaço, mas também o enriquecem de maneiras inimagináveis.

Jay-Z, marido da cantora, fez críticas ao próprio Grammy Awards em sua última edição, e lembrou o fato de Beyoncé nunca ter vencido um Álbum do Ano (Foto: Parkwood Entertainment)

Embora ela já tenha enfatizado, entretanto, que este não é um álbum de country, mas sim “um álbum Beyoncé“, a presença de samples de funk em SPAGHETTII e referências latinas em FLAMENCO e YA YA nos faz questionar se não estamos diante de um cowboy country inovador e revolucionário.

A faixa ALLIIGATOR TEARS, com suas melodias suaves, é uma verdadeira joia, demonstrando o talento de Beyoncé em mesclar influências culturais de forma sutil e envolvente. É uma declaração de que, além de ser uma diva do pop, ela é uma contadora de histórias magistral.

Enquanto os puristas do country talvez torçam o nariz para essa intrusão ousada, entretanto, Beyoncé está pisando firmemente em seus estribos, pronta para conquistar o coração e a alma de um gênero que há muito tempo precisa de uma renovação.

Com Cowboy Carter, Beyoncé alcançou duas semanas consecutivas no topo da Billboard 200 (Foto: Blair Caldwell)

A semente plantada em Daddy Lessons, do álbum Lemonade, finalmente floresce em Cowboy Carter, com a faixa DAUGHTER, revelando uma Beyoncé que não apenas aperfeiçoa suas ideias, mas as eleva a novos patamares de excelência. O mesmo pode ser dito de TEXAS HOLD’EM, que consolidou Bey como a primeira mulher negra a alcançar o topo da parada musical Hot Country Songs da Billboard.

As colaborações com Miley Cyrus, Shabooezy, Willie Jones e Post Malone trazem um frescor irresistível das vozes da nova geração, mantendo uma conexão autêntica com a tradição da música country. Essas participações não são apenas momentos musicais, mas afirmações poderosas de identidade e legado. Não se trata apenas de fazer música; é uma revolução sonora em pleno galope que mostra ao mundo que há espaço para todos na grande mesa da Música – independentemente da cor da pele ou do tipo de chapéu que se usa.

Como uma narrativa que se fecha e se abre ao mesmo tempo, Beyoncé encerra de forma sublime e poética. Em AMEN, ela volta aos versos da primeira faixa do álbum, criando uma sensação de ciclo infinito, como se algo que acabou de chegar ao fim estivesse prestes a renascer – o que seria muito mais majestoso se este tivesse sido lançado antes de seu antecessor.

Cowboy Carter conquistou a maior estreia global do Spotify após somar mais de 76 milhões de reproduções (Foto: Parkwood Entertainment)

Com um álbum repleto de 27 músicas, é impossível abordar todas elas aqui – e talvez seja essa a beleza e a complexidade da sua obra. Cada faixa carrega consigo sua própria singularidade, seu próprio significado, que pode ressoar de maneira distinta com cada ouvinte. A questão é que, no mundo da música pop, poucas figuras são tão misteriosas quanto Beyoncé.

Desde de seu estrelato, a diva não só redefiniu o que significa ser uma superestrela, mas também desafiou as normas ao redor do próprio processo criativo. Nos últimos anos, Beyoncé Knowles-Carter adotou uma abordagem que poderia ser descrita como “faça você mesmo entender”, especialmente após 2016. Sim, estamos falando do mítico Lemonade. É como se ela dissesse: “Se você entendeu, ótimo. Se não, bem… talvez da próxima vez“.

E quem precisa de uma explicação detalhada quando se tem o poder de deixar multidões em estado de êxtase com uma simples jogada de cabelo? Mas, pense bem, há algo genuinamente revolucionário nessa abordagem. Enquanto alguns artistas despejam análises exaustivas sobre seus trabalhos, como se fossem acadêmicos apresentando uma tese, a cantora está ocupada fazendo História.

Afinal, é uma nova era na música country, e Beyoncé está liderando o bando – com um toque de glamour e uma dose saudável de rebeldia.

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