Alma do Deserto grita uma denúncia silenciosa

Documentário vencedor do Leão Queer em Veneza conta a história de Georgina

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Em La Guajira, no norte da Colômbia, vive uma mulher de poucas palavras. Ela é Georgina, da etnia indígena Wayúu, protagonista do documentário Alma do Deserto, vencedor do Leão Queer do Festival de Veneza. Da arenosa paisagem, a diretora colombiana Mónica Taboada-Tapia extrai o elixir que move a idosa, em busca de identidade.

O documento que carrega, na verdade, foi achado ao relento. Vítima de um incêndio criminoso que a marcou alvo pela identidade trans, Georgina quer tirar um RG para poder votar nas próximas eleições. Ela está impregnada na burocracia há 45 anos. Quando chega a um órgão do governo, um funcionário diz assim, e o outro repete assado.

Resumo: Georgina precisará cruzar mais de mil quilômetros e adentrar uma sede mais tecnológica de emissão. O caminho, acompanhado pela câmera ostensiva de Taboada-Tapia, serve aos propósitos de um filme calmo, silencioso e revelador.

Alma del desierto é uma coprodução entre Colômbia e Brasil (Foto: Retrato Filmes)

Georgina guarda as emoções, e só chora ao anoitecer, quando o sol se põe e os irmãos, num cabo de guerra emocional que revela preconceito e ódio, recebem-na com antipatia. Por isso, a odisseia da mulher não é apenas no campo físico: ela quer ter sua identidade reconhecida e aceita pela população.

A transfobia velada é afiada nas frases que trocam seus pronomes, e também na evidente falta de amparo e apoio daqueles que servem aos cidadãos, especialmente os mais pobres. Os ambientes estão cheios de pessoas em situações semelhantes, mas Georgina persiste.

Alma do Deserto foi exibido na Jornada dos Autores do Festival de Veneza e passou pela 48ª Mostra de SP (Foto: Retrato Filmes)

Ela aguenta as filas, tolera as assinaturas e as checagens no sistema. Também torna-se avatar de uma maléfica investida político-social: a de apagar vozes e opiniões não-brancas. As comunidades indígenas de Alma do Deserto são isoladas pela geografia e têm seu livre-arbítrio ditado.

Quando consegue alcançar seu objetivo, Georgina toma uma decisão própria, enfim livre para escolher. As dores de uma mulher que carrega mágoas por uma vida toda, falando sobre família e paixão estão no DNA do documentário, uma parceria entre Colômbia e Brasil que ilumina narrativas trans fora da hegemonia do norte mundial. 

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