Roxie Hart tinha uma vida pacata e o sonho do estrelato. O que ela não sabia, entretanto, é que alcançaria tal fama por meios criminosos. Na cama com o amante, que a engana com mentiras inofensivas, ela perde a paciência, mete bala no canalha e vai parar atrás das grades. Lá, conhece a tão hipnotizante quanto perigosa Velma Kelly, igualmente interessada em tornar-se estrela.
A história de Chicago não é novidade para ninguém: surgiu nos anos 20, foi repaginada em forma de musical nos anos 70 e, trinta anos depois, explodiu no Cinema. Grande vencedor do Oscar 2003, a estreia de Rob Marshall na direção ilumina sets luxuosos e brinca de fantasia em uma realidade marcada pelo machismo e pela severidade da lei.
No centro do picadeiro, Renée Zellweger veste a carapuça da inocência para ludibriar o sistema e, com a ajuda da guarda Matron Mama Morton (Queen Latifah) e do advogado cafajeste Billy Flynn (Richard Gere), sonha em passar de presidiária a atriz e dançarina. Na sombra de Roxie, Catherine Zeta-Jones suou para vencer o prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante, em um desempenho que oscilava entre a selvageria e a rouquidão da alma em pedaços.
O roteiro de Bill Condon (de Deuses e Monstros e as duas partes de Amanhecer) segue o libreto de Bob Fosse e Fred Ebb, por sua vez usando a base original de Maurine Dallas Watkins. Tratando-se de um musical carregado de referências e estética cabaré, Chicago sai do terreno do cafona e se imerge em uma fantasia de mentira, onde bandidas são cantoras profissionais e as celas imundas ganham contornos de teatro.
Até mesmo a corte, o tribunal e a relação das mulheres com o advogado se transforma em atração circense, extraindo do elenco performances em vocal e físico estupendas e impressionantes. Falar das melhores canções seria exaustivo, já que a trilha sonora completa é digna de menção e louros. Como destaque, All That Jazz, Funny Hunny e Cell Block Tango são de babar.
A inigualável When You’re Good to Mama vive com vigor na cultura pop (e ganhou recapitulação na final da 15ª temporada de RuPaul’s Drag Race, na voz de Jinkx Monsoon, artista drag que interpretou Mama Morton na Broadway). O marido bobão de Roxie ganha um momento de destaque na letra de Mister Cellophane, momento em que John C. Reilly se ajoelha por perdão e aceita o papel de palhaço na história toda.
Chicago estreou em 2002, apenas um ano depois do sucesso Moulin Rouge!, e marcou uma breve renascença do musical na indústria norte-americana. Era o momento de adaptar histórias clássicas da Broadway e do West End, em uma manobra mercadológica que abraçou as perfeições e os maneirismos dos cineastas. Neste caso específico, porém, Rob Marshall escondeu sua inabilidade na direção por trás das composições, da coreografia e do elenco.
Nos anos seguintes, quando comandou filmes como Caminhos da Floresta, O Retorno de Mary Poppins e o live-action de A Pequena Sereia, ficou claro que o relâmpago de Chicago estava engarrafado ao redor do diretor. Todavia, como explicitado pelos votantes da temporada de 2003, o musical caiu na gandaia e até serviu bis.
Além do triunfo de Zeta-Jones, derrotando ninguém menos que Meryl Streep em Adaptação, o longa venceu mais 5 estatuetas: Direção de Arte, Figurino, Montagem, Som e Melhor Filme. Apesar das indicações em Direção e Roteiro Adaptado, perdeu as duas disputas e é até hoje um dos 10 únicos campeões de Best Picture sem este combo milagroso.
Fotografia e Canção Original, para I Move On, completaram as indicações técnicas. Queen Latifah entrou na lista que premiou Zeta-Jones, enquanto Reilly apareceu em Ator Coadjuvante. A surpresa ficou para a omissão de Gere, deslumbrante no papel do advogado, que venceu o Globo de Ouro e mesmo assim permaneceu virgem de indicações ao Oscar. Zellweger, uma das favoritas ao troféu de Atriz (ela venceu no Globo e no SAG), perdeu para Nicole Kidman em As Horas.
Kidman, por sua vez, havia perdido no ano anterior – por Moulin Rouge! – e carregou certa fama de injustiçada, o que alavancou sua campanha vitoriosa. Zellweger, perdedora na disputa pelo musical amado e celebrado, seria celebrada no ano seguinte, por Cold Mountain, no que seria seu primeiro troféu da Academia. A vitória final de Chicago não foi surpresa, já que arrecadou o Sindicato dos Atores, dos Diretores e dos Produtores.
O que pode explicar o sucesso de Chicago é justamente a gênese de sua formação. Mulheres traídas e subjugadas, em um período que as enforcava sob qualquer preceito, tendo de sujar as mãos para mudar o curso do próprio destino. Cientes do espetáculo que amalgama o mundo, Roxie, Velma e as demais encarceradas, fazem o dito e o maldito para saírem com o mínimo de dignidade, força, e, no fim, terem seus egos massageados e lambuzados de amor.
Acusada de matar a irmã – com quem dividia um icônico ato em dupla – Velma é o papel da vida de Zeta-Jones, que insistiu na peruca chanel, aprendeu os passos de dança e sangrou honestidade e carisma. No Oscar, ela subiu ao palco brilhando, apenas 10 dias antes de dar à luz a filha com Michael Douglas. Ao seu lado, a Mama Morton de Queen Latifah uniu o je ne sais quoi com o induto de autoridade que transpirava dela junto da sensualidade e do cansaço.
A repórter abelhuda Mary Sunshine (Christine Baranski) é a mosca que insiste em dormir no topo do nariz das protagonistas, enfiada em toda fresta que dê a ela a manchete mais chamativa. A sociedade do espetáculo se impregna nas ações do advogado de Richard Gere, um sujeito mal-intencionado , mas charmoso até dizer chega. Suas clientes sabiam que estavam sendo enganadas pelos cheques gordos, mas os cinco minutos de atenção do profissional valiam a pena.
Zellweger coloca a ingenuidade em primeiro plano, mas sua Roxie sai do casulo à medida que o caso ganha notoriedade e novas oportunidades são concebidas na hora H. Distinta da engessada e petrificada performance que deu a ela o Oscar por Judy, desta vez o vozeirão é mais amigo do que adversário, colocando o público – e a corte – à sua mercê. Como o coração pulsante de Chicago, Roxie Hart desfila suas qualidades e esconde suas mazelas e desvios de personalidade.
Não há muito mistério na receita: musical querido nos palcos faz a transição para as telas mantendo o borogodó intacto, adicionando atrizes em calibre máximo e atores que surpreendem no humor e no gingado, transformando, assim, um clássico vencedor do Tony em um fenômeno com título de campeão do Oscar. De lá para cá, Hollywood caiu em desamor pelo gênero, e Chicago permanece como o último musical a vencer Melhor Filme – na história da Academia, foram 11. E já que o assunto é canto de cisne, que seja um tão embriagado, pomposo e viciante quanto este.
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