Conheci Bob Dylan no primeiro ano do Ensino Médio, exatamente uma década atrás. Na ocasião, um amigo (beijo, Henrique) me puxou para o trabalho de inglês, formando um quarteto com duas colegas que sentavam ao nosso redor. A tarefa era simples: escolher um artista e uma canção, analisar composição e metáforas, na língua inglesa, e sua tradução. Ouvir Blowin’ in the Wind pintou um retrato otimista e desconfiado do homem por trás da voz pacífica. Com esse conhecimento da mitologia, assisti sua cinebiografia.
Fortemente impactada pela pandemia, a produção de Um Completo Desconhecido só foi florescer anos depois do plano inicial. O adiamento provou-se fortuito: na pele de Bob Dylan, o jovem Timothée Chalamet aprendeu de cor e salteado a partitura das canções, dominando guitarra, gaita e modelando a voz e o timbre para igualar os dotes do cantor. Na direção de James Mangold, o drama musical voa no controle e no planejamento.

Com calendário de gravações enxugado pela agenda atarefada de todos os envolvidos, o projeto que nasceu como Going Electric, baseado no livro que Elijah Wald narra o pulo de Dylan do folk para o rock. Um Completo Desconhecido abdica do peso de percorrer a longa vida do biografado, e atenta-se a dois recortes primordiais de sua caminhada.
Em 1961, recém-chegado à Nova Iorque, volta a Jersey para visitar um adoentado Woody Guthrie (Scoot McNairy), e lá conhece Pete Seeger (Edward Norton). De conhecidos, passam a amigos e parceiros no folk, gênero que Dylan popularizou no que se provou uma ascensão meteórica à fama.

Quatro anos depois, já confiante no papel que exercia dentro da cultura maniqueista e opressora norte-americana, em período de guerra e protestos por direitos civis, Dylan não trai a visão contracultural que cultivou desde a nebulosa infância. Pior: bate o pé e não aceita o assédio da audiência, tampouco suas exigências.
Chalamet, que almeja o posto de homem mais jovem a vencer o Oscar de Melhor Ator no próximo 2 de março, entrega de corpo e alma uma performance nada egoísta ou afetada. Ele fala como Dylan, engolindo sílabas e digerindo palavras. Quando canta, deixa o arranhar do gogó guiar a canção, e, quando divide o microfone com Joan Baez (Monica Barbaro), harmoniza melodias além das notas musicais.

O trabalho de Barbaro, reconhecido nas indicações do SAG e do Oscar, é nada menos do que espetacular, numa hipnose branda que conquista Bob e público. É o feitiço de sua voz calma, sua ferocidade nas ações e sua total e invariável investida emocional na relação com o protagonista. Também inserida no imbróglio, a fictícia namorada vivida por Elle Fanning é encarregada de quebrar a vidraça de ilusões que ronda o rock and roll sessentista.
Avesso aos arcos convencionais de vício, com a delimitada jornada de ascensão, queda e redenção, o roteiro de James Mangold e Jay Cocks mina as interações e decanta o mínimo para que a história caminhe para frente. O diretor revisita momentos de sua filmografia na inserção do Johnny Cash de Boyd Holbrook, uma versão menos carregada de remorso que a que Joaquin Phoenix entregou em Walk the Line.

Sincero e tímido na pele de um homem de brandura, Edward Norton entra pela quarta vez na disputa pelo Oscar, e, vivendo uma pessoa real que delimita a jornada do protagonista, pode muito bem surfar na onda do longa e acabar premiado – na mais contida de suas passagens pelo teatro da Academia, é bom reiterar. Indicado a 8 categorias na cerimônia de 2025, A Complete Unknown foi lembrado também em Filme, Direção, Roteiro Adaptado, Som e Figurino, além do trio de atores.
Na sinuca de bico que todo artista deve se enxergar pelo menos uma vez na carreira, o filme pinta Dylan como o ermitão que evita conflitos. Vencedor do Nobel de Literatura e de um Oscar pela Canção Original de Garotos Incríveis, prêmio que ele costumava levar em turnês e enfeitar o palco com, o cantor ganha aqui uma homenagem em iguais partes nostálgica e expressiva; com destaque para a captação de som (fantástica), as atuações (na linha) e as músicas (obviamente incríveis).
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