Na Boston cinzenta de vielas escuras e bueiros sugadores de bolas, os protagonistas de Sobre Meninos e Lobos cresceram sendo devorados. Jimmy, pelo mundo do crime. Sean, pela força policial. E Dave, pelo fantasma que o assombra desde que, num dia qualquer, entrou no carro de dois sujeitos e foi mantido refém por quatro dias. Os amigos de infância tornaram-se conhecidos, com apenas um aceno sutil quando se cruzam pelas ruas.
Sobre Meninos e Lobos, ou Mystic River, marca o retorno de Clint Eastwood ao apetite da Academia, que reconheceu seu drama com 6 indicações e 2 vitórias na noite do Oscar 2004. Além das menções em Melhor Filme e Direção, esteve no páreo de Roteiro Adaptado e Atriz Coadjuvante, para a recém-premiada Marcia Gay Harden. Mas foram os homens, do título e do elenco, que venceram.
Sean Penn, pela performance sufocante de Jimmy Markum, superou Bill Murray em Encontros e Desencontros, enquanto Tim Robbins varreu a temporada, transformando sua atuação visceral e descontrolada como o traumatizado Dave Boyle em uma estatueta de Melhor Ator Coadjuvante. A noite, porém, foi dominada pelo histórico feito do terceiro O Senhor dos Anéis, com 11 indicações e 11 vitórias.
Com base no romance de Dennis Lehane, o roteiro de Brian Helgeland isola os protagonistas na vida adulta. Eastwood, que também assina a trilha sonora, em uma tarefa inédita da longa carreira, constantemente corta os momentos de tensão e brutalidade com longos takes do céu, branco e opaco, como se voltasse à Deus uma espécie de pergunta misericordiosa. No centro da ação, Mystic River situa-se entre o crime e a lei.
Jimmy, um dono de um mercadinho com passagem criminal, perde a filha em um assassinato. A jovem de 19 anos saiu com as amigas e nunca mais voltou, sendo encontrada no parque da cidade, com ferimentos que indicam violência. Na mesma noite, um esbaforido e assustado Dave Boyle chega em casa ensanguentado. De acordo com ele, foi um assalto que deu errado, com o sujeito deixado sangrando na calçada. A esposa Celeste (Harden) não compra a história e fica atenta ao jornal, em busca de uma nota que corrobore o testemunho do marido.
No dia seguinte, o detetive Sean Devine (Kevin Bacon) recebe a tarefa de investigar o desaparecimento da garota. Ele reconhece o sobrenome e relembra os acontecimentos que abrem o filme. Os três garotos, na década de 70, brincando de bola na rua e decidindo rabiscar seus nomes no concreto molhado. Um carro para, o suposto policial adverte a molecada e obriga um deles a subir no banco de trás. Dave é o sacrifício. Com os olhos chorosos, ele implora em silêncio pela salvação. No lado do passageiro, um padre sorri.
Dave foi mantido em cativeiro, e sofreu abuso físico e sexual. Fugiu pela floresta, mas nunca se recuperou. Os homens tampouco pagaram pelo crime. Agora, em um casamento de silêncio e pai de um garotinho frágil, Tim Robbins encara o demônio nos olhos, oscilando seus humores entre o inofensivo e o imperdoável. Parte da família postiça de Jimmy, com quem perdeu qualquer laço ou afeto, Dave se esgueira por Mystic River, na forma de um espectro natimorto.
Penn, na interpretação que garantiu o primeiro de dois Oscars, joga o charme para cima e recolhe os cacos de insatisfação e de perigo, de uma vida marcada pelos tiros, pelo temor e, de agora em diante, pelo luto. A esposa Annabeth (Laura Linney) é mais presença do que discurso, e apoia as decisões imorais de Jimmy. No filme de Clint, a mágoa da infância não some com o passar do tempo, ganhando contornos de morte e exoneração.
Mystic River é sóbrio e soberano na interpretação do trauma como herança genética. Figuras paternas violentas dão frutos a filhos embebidos do bruto e do insípido. E enquanto a montagem de Joel Cox lida com perfeição com o andamento da história, respirando com folga ante cada decisão, é a trilha de Eastwood, aliada a fotografia prosaica de Tom Stern, que transforma a experiência em partes iguais excruciante e irresistível. Um tipo de drama enraizado na masculinidade, brindado com performances irretocáveis de atores batizados à glória.
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