Preciosa: Uma História de Esperança é um filme difícil de ser assistido. A protagonista, papel debute de Gabourey Sidibe, tem 16 anos, está grávida do segundo filho e não sabe ler ou escrever. O pai das crianças, ausente, é também pai dela. Sua mãe é algoz da situação, xingando e agredindo a garota. O que o diretor Lee Daniels encontra a partir do campo de desolação, contudo, é um resquício de resiliência.
Protótipo do tipo de história sobre sofrimento negro que busca conscientizar e agradar a audiência com recompensas emocionais, o filme venceu o Prêmio do Júri no Festival de Sundance e desde lá contou com o apoio de Oprah Winfrey e Tyler Perry, produtores de influência e prestígio. O roteiro de Geoffrey Fletcher se baseia no livro Push, escrito por Sapphire, e interliga a vida de Preciosa com a professora Sra. Rain (Paula Patton).
Dessa situação de desolação e abuso, Lee Daniels se entrega aos devaneios da protagonista, ao que se aproxima com cautela, respeito e muito cuidado. Sidibe, que mais tarde ganharia fama pelas parcerias com Ryan Murphy, condensa as emoções e o medo em uma fachada espinhosa e nada convidativa. Demora um bocado para que a professora, junto da assistente social interpretada por Mariah Carey, conseguirem um vislumbre, uma chance de içar a adolescente da escuridão sem esperanças.
A estrela do filme, por contraste, acaba sendo a provedora de muito desse comportamento. Mo’Nique venceu o Oscar 2010 de Melhor Atriz Coadjuvante no que se mostrou uma disputa facílima. Sua personagem é uma víbora de marca maior, mas que na atuação da cantora e comediante, ganha contornos de devassidão e amplitude emocional. O ódio descomunal pela filha é explorado tanto pela lente da maternidade quanto pela do abuso psicológico. Ela declara que aceitou o papel por, sendo ela mesmo uma vitima de abuso e incesto, aumentar a discussão sobre a situação.
Embora apareça em momentos decisivos da trama, Mary é uma sombra que persegue Preciosa, definindo e delimitando a rotina dela com os próprios filhos e com o futuro. Na escola pública, a menina não consegue a concentração e o foco, e só quando o cenário muda para uma aula particular com estudantes em situação de vulnerabilidade social, ela consegue um respiro.
Na câmera, o filme abraça a estética saturada dos sonhos de Preciosa, enquanto o roteiro é rápido no gatilho, com tirada atrás de tirada, e nada de ignorar a violência verbal. Geoffrey Fletcher, que venceu o Oscar de Adaptado, tornando-se o primeiro negro a fazê-lo, não busca misericórdia ou penitência para seus personagens. Além do prêmio pelo texto, Mo’Nique se tornou a quarta negra a ganhar Atriz Coadjuvante.
Sua vitória carrega um arquétipo que data da histórica Hattie McDaniel, em 1940 – a quem ela agradeceu: o papel da mulher negra, às vezes gorda, que guia e molda a jornada do protagonista. No começo, era regra o parceiro principal ser branco, mas o tempo foi mudando a estatística. Depois de Mo’Nique, atrizes como Octavia Spencer (Histórias Cruzadas), Viola Davis (Um Limite entre Nós) e Da’Vine Joy Randolph (Os Rejeitados) seguem em parte a cartilha.
Não é surpresa, também, que a lista de negras vencendo em Atriz Coadjuvante seja a maior entre as categorias de atuação: Hollywood tem a predileção de condecorar a tragédia não-branca, e se o fizer nas disputas longe do protagonismo, melhor ainda. Até hoje, Halle Berry é a única Melhor Atriz negra. O compilado de profissionais negros reconhecidos em qualquer categoria é expressivo, e os números podem ser contados nos dedos (quando o assunto são vitórias, diminui exponencialmente).
Preciosa fez barulho na disputa da Academia, acumulando indicações em Montagem (para Joe Klotz), Direção para Lee Daniels, Atriz para Sidibe e Melhor Filme (na primeira vez que um longa dirigido por um negro disputava a categoria). Venceu Roteiro Adaptado e Atriz Coadjuvante. Na melhor performance da categoria, Gabourey perdeu para Sandra Bullock, que estava indicada pelo trabalho canastrão em Um Sonho Possível, retrato do salvador branco em uma história de sofrimento negra.
Muitos anos depois de seu lançamento, é fato que o próprio Preciosa carrega um pouco do estigma de longa racial feito para molhar os lencinhos dos espectadores brancos, que apreciam a bravura na ficção, mas estão afastados de situações reais que possam compartilhar semelhanças. Com o tempo, produções do gênero caíram em desuso, dando vazão para histórias menos superficiais. É só olhar para as vitórias de Moonlight, Corra!, Infiltrado na Klan, Judas e o Messias Negro e Ficção Americana – e esses são apenas os filmes de Oscar.
A Nova York devastada pelas políticas públicas de nomes como Rudy Giuliani foi o centro de uma forma de racismo que transpassou o que se entendia por segregação e gentrificação. No meio de toda essa artilharia, a jovem Preciosa buscou uma chance de se desviar de um predisposto e fadado futuro de decepções. O sucesso foi proporcional ao arco dramático da jovem, rendendo um filme datado, mas jamais obsoleto.
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