Esse é polêmico. O Discurso do Rei começou a temporada de 2011 abocanhando um par de prêmios aqui e ali. O reconhecimento parecia se voltar para dois polos muito competentes do filme: o roteiro original de David Seidler e a atuação principal de Colin Firth. Chegada a cerimônia do Oscar, os precursores se confirmaram, mas o drama saiu também com outros importantes e imensos troféus.
No saldo final, The King’s Speech concorreu a 12 estatuetas, efetivamente ganhando um terço delas. Além de Ator e Roteiro, Tom Hooper subiu ao palco para receber a congratulação de Melhor Direção, e os produtores fizeram o discurso de encerramento da noite, dado ao vencedor do Oscar de Melhor Filme. Mas, então, como uma produção tão vitoriosa e exitosa saiu de cena com título de vilã e costumeiramente habita o fundo do poço quando as listas elencam os méritos dos campeões?
Simples: O Discurso do Rei concorria com alguns dos filmes mais badalados da década. Seu grande desafiante, e o favorito na época do Globo de Ouro e do Critics Choice, era A Rede Social, o magnum opus de David Fincher que conseguiu retorcer as origens do Facebook em um retrato pútrido da cultura do ego e da disputa por estrelato. Além, estava no páreo o incomparável Toy Story 3, junto de fenômenos independentes, como Cisne Negro, A Origem e 127 Horas.
Perto destes, que se provaram filmes além de seu recorte temporal, permanecendo relevantes em escopo e alcance, O Discurso do Rei representava uma escolha segura e sólida, mais de acordo aos votantes “ultrapassados” da Academia. No segundo ano da expansão da categoria principal e do voto preferencial, o filme de Tom Hooper se beneficiou de seus alicerces.
Afinal, um diretor britânico realizando um drama com requintes de comédia, que capturava um vislumbre da vida de um Rei da Inglaterra, tinha tudo para agradar os puristas que votam no Oscar. Na história, após a morte do pai (Michael Gambon) e a renúncia do irmão Edward VIII (Guy Pearce), o inexperiente George VI (Firth) precisa superar a gagueira para assumir com propriedade a posição de soberano.
Ele já havia tentado de tudo, dos treinos vocais simples até a técnica rudimentar de falar com bolinhas de gude ocupando o espaço vazio entre a língua e o céu da boca. Desesperada, a Rainha Elizabeth (Helena Bonham Carter) encontra o contato de Lionel Logue (Geoffrey Rush), um australiano que abandonou a carreira de ator e agora se concentra na profissão de terapeuta da fala.
De cara, o monarca não aceita os maneirismos e a abordagem do professor, causando uma fissura que será remediada na construção de uma amizade e, acima de tudo, uma história de superação e boas vibrações. Tom Hooper, que vinha de uma porção de trabalhos na TV e fazia deste seu grande mergulho no Cinema, é hermético na teoria e vistoso na prática.
Ele conduz O Discurso do Rei com maestria e bom humor, demolindo as barreiras formais e de etiqueta em momentos de aulas e ensinamentos, com Lionel chegando a cutucar e irritar o Rei, tirando dele reações hilárias e, mais para a frente, verdadeiramente emocionantes e tocantes. No centro da trama, Firth e Rush são gladiadores em tela, apunhalando um ao outro sem sinal de descanso ou trégua.
O resultado é um dueto afinadíssimo, complementado pela performance de suporte dada pela sempre elegante, e desta vez nada erudita ou desmiolada, Helena Bonham Carter – a atriz precisou organizar as filmagens de O Discurso do Rei ao redor das datas reservadas para o final de Harry Potter. Não é difícil enxergar o apelo e o fácil trato digestivo causado pelo longa, que foi na contramão da acidez de Fincher, da penumbra de Aronofsky e da ternura distante da animação dos bonecos de Andy.
O Discurso do Rei venceu o Oscar depois de perder grandes prêmios para A Rede Social, mas foi ganhando tração graças ao charme do elenco, escolhido como o Melhor do Ano no Sindicato dos Atores, em uma importante ponte para a vitória máxima da Academia. Com os trabalhos de Firth e do roteirista reconhecidos, era questão de alinhamento estelar colocar Hooper e os produtores no alto da glória dourada. O cineasta perdeu o BAFTA, em sua terra natal, para o americano, mas ganhou o DGAe o PGA.
Na noite de 27 de fevereiro de 2011, apesar da apresentação para lá de histriônica e estática de Anne Hathaway e James Franco, O Discurso do Rei foi o maior vitorioso, ao lado de A Origem, que venceu o mesmo número de prêmios, 4. O Vencedor consagrou seus dois Coadjuvantes, enquanto Natalie Portman venceu como a Melhor Atriz, por Cisne Negro. Toy Story 3 tornou-se a última animação reconhecida na categoria principal, enquanto A Rede Social amargou “apenas” um trio de carecas: pela montagem, trilha sonora e roteiro adaptado.
Nos bastidores, o filme de Hooper coleciona uma porção de gemas escondidas: para começar, a ideia surgiu na juventude do roteirista, que também sofria com a gagueira, e entrou em contato com a Rainha-Mãe. A idosa, que morreu em 2002, autorizou a produção do filme mas apenas após sua partida, já que as memórias traziam sentimentos ruins demais. O discurso do título não é lido na íntegra; o original continha 407 palavras, enquanto o do roteiro somava apenas 269.
Após o término das filmagens, a vida imitou a arte, que imitou a vida sem querer: Colin Firth precisou contratar um terapeuta de fala para livrá-lo da gagueira, assim como Rei George. No Oscar, Firth venceu pelo papel do Rei da Inglaterra; no ano seguinte, ele entregou o prêmio para Meryl Streep, intérprete da Dama de Ferro, e ela, por sua vez, devolveu a estatueta para Daniel Day-Lewis, que deu vida a Abraham Lincoln. Uma trinca que envolveu figuras governamentais do Reino Unido e dos Estados Unidos.
A vitória de Firth, aliás, marca outra coincidência: pai e filha da vida real que foram interpretados no Cinema e saíram premiados do Oscar. Em 2006, Helen Mirren venceu Melhor Atriz por A Rainha, vivendo, é claro, a Rainha Elizabeth II. Desde o triunfo de The King’s Speech (o segundo Melhor Filme a conter “rei” no nome no século XXI), a Academia apaziguou o amor pelo clássico e tendeu aos produtos mais modernos, autorais e disruptivos. Indigno de todo o ódio e o rancor que carrega junto do manto dourado do Oscar, O Discurso do Rei ainda tem muito a dizer, todos esses anos depois.
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