O sucesso de A Light for Attracting Attention (2022) parecia ameaçar desde sua origem qualquer continuidade do que, a princípio, foi apresentado como um projeto paralelo. Ainda que Jonny Greenwood tenha revelado que muitas canções ficaram fora do primeiro disco, e mesmo que algumas dessas faixas “extras” tenham sido tocadas nos shows do trio pelo mundo, a questão paradoxal refletia no lançamento de um novo álbum: ao mesmo tempo que o risco iminente seria apresentar um trabalho inferior ao anterior – repetindo faixas similares ao primeiro –, os consumidores cobravam mais do material que parecia matar as saudades de um Radiohead que deixou de existir há mais de 20 anos.
Com a chegada de Wall Of Eyes, lançado em 26 de janeiro, a sequência consegue se manter atraente, mas outras coisas se tornam evidentes. Uma delas é que a frase “wall of eyes” apareceu em diversas artes promocionais de The King of Limbs em 2011, mantendo o trabalho na órbita do Radiohead, além de alimentar especulações acerca de um EP “perdido” do grupo chamado Wall of Ice, que supostamente seria lançado em 2009.
Mas a principal, talvez, seja a dificuldade de afirmar que The Smile se trata de um simples projeto paralelo. Indo além do hiato do Radiohead, a banda parece ser parte fundamental da identidade de Thom Yorke e Greenwood hoje. Se, em You Know Me!, Yorke canta “Não pense que me conhece/ Não pense que eu sou tudo o que você diz” – numa demonstração da ironia clássica que percorre suas letras desde Pablo Honey (1993) –, em muitos aspectos a óbvia impossibilidade de continuar como se nada tivesse acontecido antes parece descartada.
Jazz, rock progressivo, afrobeat e até samba surgem como influências no novo disco produzido por Sam Petts-Davies – deixando de lado o fiel Nigel Godrich –, mas tudo parece ser melhor comportado no guarda-chuva do art-rock. Trata-se, afinal, de um CD com grande influência da arte de vanguarda, mas também, e talvez principalmente, do experimentalismo formal. Também é verdade que há muito mais sintetizadores nesse disco do que no primeiro, em que as guitarras de Jonny faziam lembrar o melhor de OK Computer (1997) ou There, There, de Hail to the Thief (2003).
Embora pareça explorar novos caminhos sonoros e amadureça o som já estilizado do trio, a verdade indigesta é que Wall Of Eyes se trata de um disco menos explosivo em relação ao primeiro – mas não menos interessante. Não consigo lembrar exatamente quando ouvi In Rainbows (2007) pela primeira vez, mas me lembro com bastante clareza da sensação esquisita de escutar House of Cards e sentir a reverberação dos instrumentos me levar a um campo onírico e estranhamente familiar – talvez pela junção da voz distante de Thom Yorke aos ruídos que surgem e desaparecem da canção (as entradas de baixo, os efeitos de sintetizadores, a repetição da palavra “negação”) –, como se eu pudesse ouvi-la no fim de uma festa ou em casa, sozinho, como realmente fiz.
Tive um sentimento semelhante com Teleharmonic, uma das melhores canções feitas por Yorke e Greenwood, somando às quatro mãos o baterista Tom Skinner, também creditado como letrista. Esse “campo onírico”, na verdade, talvez seja o que mais define a aura de Wall Of Eyes, mas também traduz com clareza as composições do Radiohead, do Atoms For Peace e até algumas faixas do disco anterior de The Smile. São “sonhos” diferentes, mas o óbvio constante é a presença de Yorke como letrista e sua obsessão pela cultura contemporânea, danificada pela incapacidade de se sonhar e acreditar em utopias sob as regras do mundo neoliberal, cuja arte de vanguarda parece boiar quase dilacerada em um mar de individualismo hedonista.
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Uma análise aproximada pode dizer que não há nada necessariamente “novo” no disco, exceto o diálogo inevitável com uma estrutura contemporânea que pode dar nos nervos se você observar de perto. Trata-se de uma mudança estrutural que não é tão difícil de enxergar: os singles, que dominaram a atenção dos ouvintes pós-1990 ao tomar o lugar dos álbuns na importância de mercado (o sucesso das playlists de videoclipe em canais como a MTV nos anos 2000 não parece ser um acaso), agora ganham versões “speed” e “slow” para viralizar no TikTok, enquanto vídeos curtos infinitos, feitos com recortes de filmes e séries que parecem retratar um passado fantasmagórico, se movimentam nas telas dos smartphones. Álbuns conceituais parecem anacrônicos, e músicas com mais de cinco minutos soam como tentativas de chamar a atenção.
Felizmente, Wall Of Eyes é feito por músicos experientes que foram julgados há mais de 20 anos por terem “abandonado” o rock e abraçado as influências techno e dance – principalmente de Aphex Twin. Um exemplo desse abandono é a penúltima faixa do disco, Bending Hectic: um épico de oito minutos que remonta um acidente de carro – ou o desejo de sofrer um acidente de carro –, imerso na influência de J.G. Ballard e sua pulsão de morte relacionada às máquinas. Nessa balada suicida, a simples contemplação do tempo lento trata-se de um ato interessante de resistência artística, nos obrigando a imaginar Yorke ou um alguém-imaginário dirigindo pela estrada em S, até que algo acontece – uma experiência completa gerada pelos instrumentos, que deixam de lado a perfomance.
Artistas minimamente originais acreditam na incapacidade de defini-los em um estilo. Curiosamente, essa mesma categorização negada permite os cultos em torno da obra, os nichos de mercado e a simples aceitação dos ouvintes às músicas que “falam” com eles. A indústria identifica esse movimento: enquanto a imagem do enfant terrible dominou boa parte da cena rock – dando origem às posturas anacrônicas desses mesmos rockeiros contraculturais brancos que, incapazes de enxergar que a contracultura pela qual bradaram se tornou a própria cultura, hoje repugnam boa parte do pensamento estético –, as gravadoras, lojas de roupa e a indústria cinematográfica seguiam lucrando com a imagem da negação do mainstream.
Tendo isso como base e olhando em retrospecto, não seria errado afirmar que o “abandono” do rock pelo Radiohead foi uma ideia premeditada desde o início: antes mesmo de encabeçar o grupo, enquanto estudava Artes e Inglês na Universidade de Exeter – onde conheceu Stanley Donwood –, Thom Yorke integrou um projeto chamado Flicker Noise, um grupo de rock influenciado pelo techno. A verdade é que os dois primeiros discos do Radiohead destoam amplamente da discografia, sendo eles, na prática, obras fora do lugar.
Com The Smile, todas essas fases anteriores parecem contempladas, e talvez por isso seja tão difícil desvincular Yorke e Jonny Greenwood desse projeto atual, como se, agora, o resto fosse secundário. A “explosão menor” desse disco diz respeito mais à diminuição do foco nas guitarras que se deu no primeiro álbum do que às novas composições, e o que parece inevitável é a superação do rock como gênero de vanguarda.
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Sob a influência do rock, que já foi a música pop de uma era, a crítica sempre preferiu o autêntico ao sintético, o ao vivo ao gravado. O som ao vivo e o álbum historicamente foram tratados como duas entidades distintas, mas as canções gravadas foram vistas em segundo plano. Esse tipo de análise costuma reprimir as condições tecnológicas na elaboração dos discos, e os shows considerados melhores a esse grupo de críticos “rockistas” tende a ser uma reapresentação do álbum gravado, com elementos por vezes indisponíveis na apresentação ao vivo, como a sobreposição de várias faixas de guitarra e linhas de bateria. A atenção, comumente, permanece em um nível “textual” ao invés de se focar na “textura” daquilo que se vê.
Basta lembrar quantas vezes você ouviu de pessoas desinteressadas que determinado artista estava cantando/tocando/conduzindo errado uma canção própria – a comparação é sempre a obra originalmente gravada, e o som nunca é visto como um meio em si mesmo, mas como um transportador de significados. Em 2001, na esteira de Kid A (2000), Jonny Greenwood afirmou a Simon Reynolds, em entrevista à The Wire, que estava obcecado com “todo o artifício da gravação. Eu vejo a coisa assim: não é o Thom que está na sala da sua casa. Apesar disso um é visto como ‘de verdade’ e o outro, por algum motivo, ‘artificial’… É a mesma coisa com guitarras e samplers. Foi libertador descartar a ideia de que sons acústicos são mais verdadeiros”. A gravação é fantasmagórica em sua origem.
Ainda assim, o tipo de reflexão necessária para se analisar uma obra tem algo a ver com “contemplação”, mas contemplar algo talvez faça você mudar de ideia em relação ao produto, e dia após dia o silêncio deixa de existir num jogo coordenado entre mercado e consumidor – a união afetiva do neoliberalismo. Pense nos shoppings e lembre-se que há sempre uma música no fundo, sempre um ruído melodioso geral que se confunde às demais canções que vêm das próprias lojas. Retire o som e sinta a estranheza de caminhar apenas com o barulho dos próprios pensamentos.
Ao ouvir Friend of a Friend, um tipo de rock orquestral, não consigo esquecer da repetição dos versos“Todo aquele dinheiro/ Para onde foi?/ No bolso de alguém/ Um amigo de um amigo”. A crítica aos magnatas é recorrente, e Thom Yorke nunca escondeu seu desprezo pelos políticos populistas de extrema direita. Mas nessa música parece mesmo que o trio está dialogando com o período pandêmico, e o clipe dirigido por Paul Thomas Anderson indica que a conjectura é essa. O trio toca a uma plateia de crianças e a imagem que vem à mente é a de uma aula – nesse caso, um tipo de apelo histórico à próxima geração sob o que de fato aconteceu durante a pandemia de Covid-19.
Ainda que Under Our Pillows – uma espécie de irmã gêmea de Thin Thing – e I Quit espelhem lugares espaciais e distantes – quase relaxantes, na verdade –, o “enredo” de Wall Of Eyes não é muito diferente das ficções científicas em que máquinas tomam consciência de si ou humanos percebem que são mercadorias. A ideia de abrir os próprios olhos às experiências ressoa em todo o disco. Mesmo que iniciado de forma flutuante e um pouco tímida com a faixa-título, gravada num compasso 5/4, o álbum termina como um grande monstro barulhento.
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