Em Chernobyl, Craig Mazin se despede da audiência com essa indagação. Através das palavras de Valery Legasov (Jarred Harris), ele conclui que “cada mentira que contamos gera uma dívida com a verdade. Cedo ou tarde, essa dívida deve ser paga.” Assistindo O Preço, sexto episódio da segunda temporada de The Last of Us, fica fácil entender por que Mazin se interessou em adaptar a história do jogo de PlayStation em primeiro lugar. É invariavelmente uma história sobre o papel da mentira nas relações humanas, sobre as mentiras que pais contam para proteger seus filhos e sobre como elas na verdade são tentativas de proteger a si mesmos. Nesse penúltimo episódio da nova leva, a série dá um passo para trás e se foca em algo ainda mais radioativo que um desastre nuclear: a deterioração de relacionamentos paternos.
Dirigido por Neil Druckmann, criador do jogo, e co-escrito por ele, Mazin e Halley Gross (diretora narrativa de The Last of Us Parte II), O Preço reúne diversas sequências em flashback de Joel (Pedro Pascal) e Ellie (Bella Ramsey) ao longo dos anos, usando os aniversários da garota como ponto de partida para recontextualizar os eventos da temporada e os motivos que levaram Ellie à brutalizar Nora (Tati Gabrielle) no fim do episódio anterior. Enquanto no videogame essas sequências eram inseridas entre os dias que Ellie passa em Seattle, na série o ritmo é outro, e o episódio serve tanto como um respiro enorme antes do próximo salto para o abismo quanto um núcleo dramático próprio, começando com um flashback ainda mais profundo para a infância de Joel, onde ele tenta levar a culpa por seu irmão na tentativa de protegê-lo da ira do pai, o policial Javier (Tony Dalton).
Somos confrontados pela cruel verdade de que a violência já era regra no mundo muito antes do apocalipse. Joel (Andrew Diaz) sabe que o pai iria bater no seu irmão e, em seu olhar terrivelmente jovem, vemos a mesma determinação em proteger seus entes queridos que define o personagem mais velho e que conseguimos ver aflorando em Ellie também. A cena toma um rumo inesperado quando Javier oferece uma lata de cerveja ao mais velho e conta a história sobre como o avô deles fazia muito pior com ele e, à sua maneira, ele justifica sua própria violência com o argumento de que pelo menos está um pouco melhor que seu próprio pai. Ele coloca a mão no ombro de Joel e lá vemos o relógio quebrado que o personagem carrega desde a morte de Sarah (Nico Parker) , uma herança de violência e perda que por um breve momento significou felicidade. A cena termina com o homem fazendo um apelo para que seu filho seja um pouco melhor do que ele foi. A dívida da violência, tanto quanto a das mentiras, é herdada pelos que vem depois.

Não demora para percebermos que o episódio será ditado pelos aniversários de Ellie desde que ela e Joel chegaram à Jackson no final da temporada anterior. O primeiro destes vê o retorno de Seth (Robert John Burke), dono do bar local e homofóbico nas horas vagas, que implicou com Ellie e Dina (Isabela Merced) no baile de ano novo no primeiro episódio. Aqui, a série expande um pouco mais o seu personagem e ele revela ser responsável pelos bolos de chocolate e baunilha dos aniversários das crianças, além de contar que costumava ser um policial antes da pandemia. Eco do relacionamento de Joel com o próprio pai, essa é uma das pequenas revelações que, salpicadas pelo episódio, entregam o payoff de diversas sementes plantadas durante a temporada. Joel presenteia Ellie com um violão personalizado, pegando emprestado um dos desenhos de mariposa que ela havia feito, sem consciência do seu significado, e esculpindo-o no braço do instrumento.
A maioria das adaptações feitas no episódio são contextuais, dando um espaço para as cenas se encaixarem com a narrativa do seriado e expandindo alguns dos diálogos. Druckmann obviamente tem um interesse em reproduzir o mais fielmente possível as cenas mais icônicas do jogo, mas ele sabiamente escolhe colocar o peso do drama nas costas de seus atores, particularmente Pascal e Ramsey, que conduzem brilhantemente o desenvolvimento das personagens ao longo dos anos. Junto do trabalho de maquiagem e penteado, o elenco executa a mudança de anos com eficiência e graciosidade, saltando pouco a pouco até chegar na fatídica noite de ano novo que precedeu a grande tragédia. Pascal em especial oferece um genuíno tour de force, no que certamente será o episódio usado para sua campanha como Ator Coadjuvante na próxima temporada de premiações.
Apesar de começar com momentos de alívio, com Joel tentando ser o pai que nunca teve a oportunidade de ser com a própria filha e Ellie passando por uma puberdade acelerada, há algo no ar que denota uma tensão invisível entre eles. No braço de Ellie, a mordida agora oculta pela cicatriz da queimadura e, mais tarde, pela tatuagem, novamente inspirada pelo mote da mariposa. Ellie primeiro tenta arrancar as dúvidas de seu corpo à força, usando a violência contra si própria para esconder a prova de sua imunidade, agora ausente de qualquer significado maior. Depois, ela toma inspiração do violão como presente e tenta substituir a cicatriz por algo completamente separado de sua figura paterna, um desenho seu feito por uma namorada, e essa decisão por si só já começa a separá-los. É até irônico ver Joel acusando-a de passar por todos os estágios da adolescência ao mesmo tempo, quando para nós fica tão claro como as coisas começaram a desandar gradualmente.

Talvez o momento mais marcante, praticamente idêntico ao do jogo, é a visita de Joel e Ellie no museu abandonado e, mesmo reduzido para se enquadrar no tempo do episódio, consegue nos deixar tão encantados pela relação dos dois quanto suas contrapartes digitais. Com o contexto adicional do passado de Joel, esses momentos também ganham significância cíclica considerando o que virá depois. Afinal, ele está sendo melhor do que seu pai foi, não está? Vendo o sorriso na cara de Ellie ao perceber do que se trata a fita cassete que Joel à entrega, não conseguimos discordar.
No entanto, o ano seguinte entrega uma cena bem menos otimista sobre a relação dos dois. A primeira reação de Joel à sexualidade de Ellie está longe de ser ideal e, mesmo não chegando aos pés das palavras vis de Seth, vemos como elas machucam Ellie bem mais. Ecoando a conversa de Gail (Catherine O’Hara) no primeiro episódio, podemos ver como a experiência de Joel com Sarah não o preparou para cuidar de uma adolescente em crescimento, e que parte dele esperava ter mais tempo com uma Ellie apenas sua, e fica quase ressentido ao ter de ver ela crescer sem ele. Ao discutir mais tarde, a garota confronta sua falta de autonomia, se referindo tanto à casa onde eles vivem quanto a si mesma como pessoa: “Você não é dono de nada!” Para seu próprio crédito, Joel acaba cedendo e permite que Ellie more sozinha na garagem, até se interessando pela tatuagem em seu braço e o que ela significa.

Mas o choque verdadeiro vem no ano seguinte, quando as dúvidas de Ellie sobre os acontecimentos de Salt Lake City chegam ao ápice e ela se prepara para confrontar as histórias esfarrapadas de Joel. Antes disso, ele aparece e revela que o seu presente de aniversário é a oportunidade de patrulhar a cavalo junto com ele. De novo, parece que Joel está tentando honestamente se abrir para a independência de Ellie, à sua própria maneira. No entanto, talvez seja tarde demais.
Quando os dois são chamados para auxiliar outra dupla de patrulheiros, finalmente descobrimos o que aconteceu com Eugene (Joe Pantoliano), marido de Gail que foi mencionado diversas vezes nos primeiros episódios. Ele revela ter sido mordido e, no momento mais crucial do episódio, Joel mente para Ellie e diz que vai levá-lo de volta à Jackson para que ele se despeça de sua mulher. Assim como a história de Salt Lake City, é mais do que uma mentira: é uma mentira deslavada, tanto para a garota quanto para a audiência. Todos nós sabemos o que está prestes a acontecer, mas uma vez mais Ellie se força a acreditar. Para Joel, não há vocação maior do que proteger àqueles que ama, e não há nenhum ato que não possa ser justificado por essa perspectiva. Quando está prestes a atirar, Eugene pede para poupá-lo, para que ele possa ouvir as últimas palavras de Gail – não o contrário. Apesar de aparecer por apenas uma cena, o ator nos conquista imediatamente através de seu desespero, traindo o fato de que a expectativa da morte não nos torna menos egoístas ou mais desapegados àqueles que amamos.
O choque no rosto de Ellie é visto em camadas e, em seu silêncio, percebemos como tudo mudou. Ela se pronuncia apenas quando Joel tem a audácia de mentir para Gail ao contar sobre a morte de seu marido, fazendo parecer que foi escolha dele se sacrificar para não colocá-la em risco, quando na verdade essa foi a escolha que Joel fez sozinho. Em sua voz, uma raiva que nós vimos pouquíssimas vezes durante o seriado, enquanto ela narra as ações de Joel e termina com uma acusação letal, referente tanto à promessa de manter Eugene vivo quanto a de que sua imunidade não significava nada. E assim acaba o último aniversário que os dois passariam juntos.

Saltando para a noite do baile de ano novo, finalmente vemos a última conversa entre Joel e Ellie, que no videogame é a penúltima cena da Parte II. No jogo, os flashbacks entrecortavam os dias em Seattle para contrastar a escuridão opressiva que cobria Ellie, mas como a série aposta numa abordagem mais generalizada, faz sentido jogar todas essas sequências para um único episódio, que chega nas costas de um dos momentos mais sombrios da personagem. Aqui, o diálogo entre os dois na varanda é usado para fechar o ciclo trágico em que Ellie se encontra, uma última volta do parafuso que a prende firmemente no caminho em que se encontra.
É cativante ver os dois personagens tentando conversar sem mencionar o elefante na sala. Joel pergunta à Ellie sobre Dina, lançando-a numa série de sussurros desconexos, até que ele finalmente diz aquilo que deveria ter dito anos atrás: “Seria sorte dela ficar com você.” A represa se quebra, e eles finalmente conversam sobre os Vagalumes, e a verdade entalada na garganta de Joel há anos vem à tona sem palavras que a descrevam. Por entre lágrimas, os dois confrontam os motivos que levaram o contrabandista a sacrificar a melhor esperança para o mundo. Seria egoísmo ou amor? Há uma diferença entre essas coisas numa situação como essa? O preço das mentiras, como Craig Mazin nos disse há tantos anos, não é de que elas apagam a verdade, mas que elas eventualmente te fazem acreditar que ela não mais existe, e é só quando a dívida é paga que somos lembrados da tolice que é achar isso. Em seu último ato de amor, Joel oferece essa verdade a Ellie e, mesmo com todas as suas falhas, espera que tenha sido um pouco melhor do que seu próprio pai, e que sua filha seja melhor que ambos. Ele sabe que irá perdê-la, mas esse é o preço que ele aceitou pagar.
E então ela faz aquilo que ele jamais esperava, e diz que gostaria de tentar perdoá-lo. É, para dizer o mínimo, chocante. Quanto tempo os dois perderam presos em meias verdades e silêncios gélidos que uma frase tão simples foi capaz de quebrar em segundos? Assim que a cena termina, somos violentamente jogados de volta para a escuridão úmida de Seattle, com Ellie caminhando de volta para o teatro, envolta em sombras por todos os lados, buscando vingança não apenas contra Abby (Kaitlyn Dever), mas contra si mesma. No que eu arrisco dizer ser o melhor episódio da série até o momento, The Last of Us afirma que podemos herdar mais do que apenas dor daqueles que vieram antes, e que a escolha de ser melhor recai apenas em nós, ou seja lá o que resta de nós no fim do mundo.

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