Correndo mundo afora, existe a falácia de que Drag Race está sendo produzido e veiculado em excesso, sem razão. A 16ª temporada da franquia americana prova o contrário. Com a fusão e o nascimento de drag queens de todos os cantos do mapa nas telas do reality, a série-mãe adotou uma rota inédita e, desde os comerciais, prometia o tal “poder para as rainhas”.
Na prática, o que parecia ser uma estratégia de antropofagia entre as drags (à moda do formato All Stars), se provou uma manobra mercadológica. Em estreia dupla, a série dividiu o elenco de 14 em dois grupos de 7. Cada queen performava seu talento no habitual Show de abertura e, sem o auxílio dos jurados ou de RuPaul, elas ranqueariam umas às outras, decidindo assim o Top 2 da semana.
Enquanto o primeiro grupo jogou seguindo as regras, foi na segunda premiere que a coisa esquentou. Plane Jane, a primeira vilã com posto de favorita desde os tempos de Violet Chachki, burlou a moral e colocou Nymphia Wind na última posição. Apesar da performance mesmerizante da taiwanesa, que acabou amargando uma medalha de bronze, e abrindo caminho para que Plane dominasse o Lip Sync contra uma perdida Geneva Karr, e papasse a vitória da vez.
O encontro dos grupos, que aconteceu no Episódio 3, a Mãe de todos os Bailes, repetiu o formato de ranking: Wind costurou como ninguém antes, e retorceu gravatas como passe de mágica. Ganhou o challenge, é óbvio. No Bottom 2, Geneva se viu numa cilada. Das Melhores às Piores, a nativo-mexicana espantou o mau agouro de se tornar a Porkchop, e no caminho mandou embora Hershii LiqCour-Jeté, drag sister de Kornbread que repetiu a sina de voltar para casa pouco depois da largada.
O poder das rainhas acabou ali, mas não sem antes deixar de legado duas poções de imunidade, presenteadas tanto a Sapphira Cristál, vencedora da estreia, quanto a Plane Jane. A jogada, extinta desde que Alyssa Edwards foi tão mal no Snatch Game como Katy Perry 11 anos atrás, voltou à campo com um simples alerta: a dona da bebida – com data de validade – poderia usar o bem a si mesma, ou dá-lo a alguma companheira.
Tensão e estratégias também entraram na equação, já que a Poção, inspirada no clássico gay A Morte lhe Cai Bem, poderia servir de apoio para o jogo individual das drags. Mas, voltando ao assunto competitivo, a season 16 marcou um retorno ao prestígio que Drag Race parece ter deixado esvair na década recente (e com a estreia de temporadas internacionais, muitas vezes com a paixão e o fogo que os fãs não enxergam com clareza na corrida original). Este ano, teve briga, bafafá e gritaria.
A protagonista foi Plane Jane, russa de origem e sem medo de bater de porta em porta, criticando até o jeito que você gira a maçaneta. Seu principal alvo, Amanda Tori Meating, não deitou nem rolou, e latiu de volta. Embora, no quesito track record e desempenho, a loira perdeu feio, já que a maquiagem arcaica e o guarda-roupa defasado nem abriram margem para que Plane se sentisse ameaçada. Na quinta semana, a reunião obrigatória foi cancelada e a tensão morreu por motivos maiores.
Velada ainda viva, porém, foi Mirage, a drag de Las Vegas que ganhou um artigo próprio, discutindo sua presença curta, mas marcante. Onze semanas depois de seu Sashay, ela conseguiu tirar o amargo deixado por Cher, dublando com propriedade no Lalaparuza. Palco também da redenção de Megami, a rainha cosplayer de Nova Iorque, e dona dos versos mais impactantes do desafio dos Grupos Musicais (além da própria parte, foi ela que escreveu a letra de Nymphia).
Eliminada precocemente, e constantemente diminuída por um elenco desinteressado em seu alcance na arte drag, Megami virou chacota no Talent Show, e saiu pela porta dos fundos no Rusical que homenageou A Noviça Rebelde. Ao som de Flowers, e na passarela que carregava referências ao hit vencedor do Grammy de Miley Cyrus, a queen porto-riquenha sentiu o tormento e só foi encontrar paz no torneio de Dublagens, chegando até a Final, com apresentações divertidas e fora do esperado – sem pulos, espacates, mortais e cambalhotas.
Na temporada filmada durante a greve dos roteiristas e dos atores, os desafios de comédia e atuação ficaram em segundo plano. Sorte das costureiras, que tiveram que ligar a máquina e esticar tecidos em três ocasiões: primeiro, no Baile; depois, no desafio de Bonecas (com presença ilustre e deliciosa do jurado convidado Law Roach), e por fim no de tema gótico. Nymphia venceu a primeira ocasião, mas perdeu as seguintes para a outra mestre da agulha, Q.
Isso mesmo, para cada nome enorme, como Malaysia Babydoll Foxx, existe uma Q. Meio esquentada, e facilmente manipulada pela produção, ela recebeu um pouco do tratamento “da Jan”: isto é, em constante pressão e a sensação de que está sendo esquecida ou não tão reconhecida quanto deveria. Não é por menos, já que apesar de lacrar no visual cobre da boneca e na silhueta avantajada e inspirada no movimento club kid gótico, Q foi privada de algumas vitórias.
A mais notória, no desafio das apresentações de seminário. Sua dupla com Plane Jane recebeu os elogios mais enfeitados da semana, mas o Win acabou no colo de Sapphira. A situação, habitual para os super fãs da série e os cientes das engrenagens do reality, foi tão inebriante que também ganhou artigo à parte. Fato é que Q queimou a paciência e a boa vontade ao ponto de ser eliminada no Top 4, a centímetros da Final.
A ideia de voltar com o formato de Top 3, aposentada desde os tempos de Bob, Kim Chi e Naomi, mostrou-se um suspiro de ar fresco em Drag Race. Sim, a temporada 12 também contou com um trio de finalistas, mas o caso de desclassificação é diferente da intencionalidade de eliminar alguém que quase alcançou a segurança da areia da praia. Q juntou-se a Chi Chi DeVayne, Kennedy Davenport e Darienne Lake neste seleto grupo.
Quem também amargou uma estatística fúnebre foi Plasma, a rainha do teatro musical, dona de 2 vitórias solo e mesmo assim eliminada antes da metade da competição. No RDR Live! (paródia do Saturday Night Live que era fraca sem a greve, e agora piorou), ela interpretou uma caricatura de Barbra Streisand e, mais para a frente, no Rusical, assumiu o papel de Julie Andrews e matou à pau, em talvez a melhor performance em nível de dificuldade, coreografia, memorização de falas e sensação de leveza neste tipo de Challenge.
Seu fim veio pelas mãos (e pés) de Mhi’ya Iman Le’Paige, a Rainha das Piruetas, ao som da versão acelerada de Bloody Mary, usada naquele viral do TikTok com cenas de Wandinha. A Queen of Flips arrematou o Win com seu grupo, na faixa injustiçada e subestimada A.S.M.R. Lover, mas morou no Bottom. O lado bom é que ela era uma das melhores e mais versáteis dubladoras, mandando embora praticamente um terço do elenco: além de Plasma, Megami e Geneva ouviram o Sashay Away.
Mhi’ya só não é a Lip Sync Assassin de 2024 pela existência de Morphine Love Dion, sua sister de Miami. Morphine, recordista de confessionários na season com mais de 300, quase ganhou um desafio, mas também acampou nas Piores da Semana. Fez as malas da melhor amiga Xunami Muse no Snatch Game, e depois não tardou em eliminar Mhi’ya e depois Dawn, a rainha-elfa do Brooklyn que pintou e bordou em tudo que não envolvia a competição. Morphine venceu o Lalarapuza, o título de Queen of She Done Already Done Had Herses e uma maleta com 50 mil dólares.
Desde 2017 realizando as Finais e reuniões com plateias, dias antes da veiculação na TV, RuPaul mudou o jogo este ano. Os episódios trocaram o set, em uma adaptação do cenário grandioso usado no Secret Celebrity, e foram gravados em agosto do ano passado. Portanto, o Reunited foi substituído por um torneio de Dublagens, e a Grande Final repetiu o formato de números individuais e depois um Lip Sync do Top 2 pela Coroa.
Enquanto o Lalaparuza deu cabo de vários arcos e distribuiu redenções à torto e à direito, a Finale trocou o fator surpresa pela construção de um capítulo em celebração as melhores jogadoras da temporada. Plane Jane, ciente de que essa não era a hora de comemorar em russo, ficou em terceiro plano, dando espaço para Sapphira e Nymphia brilharem. Plane, vale notar, ganhou arco com ascensão e redenção, de vilã a favorita dos fãs – e um gigantesco momento de vulnerabilidade.
Sapphira, na verdade, tornou-se a segunda finalista a ganhar também a faixa de Miss Simpatia. A primeira ocorrência deste fenômeno foi na estreia do programa, quinze anos atrás, com o reconhecimento de Nina Flowers. Desta vez, Sapphira foi pega de surpresa. Primeiro, pois houve um empate: ela dividiu o título com Xunami Muse e segundo porque nem no palco ela estava. Ao ouvir o anúncio da Simpatia anterior Malaysia, Cristál saiu correndo dos bastidores, de touca e robe, preparando-se para a dublagem.
Uma das drag queens mais competentes e “rodadas” a passarem pelo Ateliê, a nativa de Filadélfia fez audição 11 vezes para o programa, finalmente conseguindo seu momento em 2024. Sua trajetória, com quatro vitórias, apenas um Bottom e looks maiores que o suportado pela passarela, não poderia ser melhor laureada ou melhorada. É um caso que causa tristeza e entendimento na mesma medida.
E fica a dúvida, se por algum motivo ela voltar para o All Stars, no que Sapphira se desenvolveria mais? Diferente da perda de Shea Couleé na s9 – marcada pelo Lip Sync obliterador de Sasha Velour, o caso da s16 soa mais casual e rotineiro do que amaldiçoado ou fatídico. Cristál pode seguir a rota de Peppermint, que trilhou sua própria carreira em paralelo ao programa e alcançou feitos históricos sem usar da plataforma ou se colocar à mercê dos jurados mais uma vez.
Nymphia pode não ter dominado os desafios como Sapphira ou Plane, que acumularam 8 vitórias entre elas. Mas, o que a taiwanesa conseguia toda semana era causar uma impressão pelos looks e pelo olhar fashion que ela capturava em cada centímetro de seu pacote drag. As bananas eram seu branding na mais pura finésse, enquanto o glamour e a singularidade chegavam quase que de forma inconsciente na mente da audiência.
No número especial de Queen of Wind, ela trocou as cores e abusou dos ventiladores, resplandecendo em púrpura. No embate final ao som de Padam Padam, os balões pretos de hélio eram maiores que apenas um gag visual. Contando a história com base na canção, e guardando todas suas habilidades labiais para o momento principal e decisivo, os espacates e piruetas passaram da repetição ao alívio e ao deleite de ver alguém em sua forma íntegra, complexa, dominante e deslumbrante. Ao vencer a Coroa, o cetro e os 200 mil dólares, Nymphia tornou-se a segunda winner asiática de Drag Race (13 anos depois de Raja) e a primeira amarela a fazê-lo.
Além do show de Nymphia e Sapphira, a Final abriu margem para o retorno da atual campeã, Sasha Colby. A lenda não apenas teve o momento de bate-papo com Mama Ru e desfilou o look de passagem de bastão, mas também performou. A música escolhida, é claro, foi Her, de Megan Thee Stallion. A epítome de Sasha, um dos pilares e vozes mais reconhecidas da comunidade queer e trans, foi explorado ao máximo: com dips, cabelão batendo e um tiquinho de tesão no abre-e-fecha do zíper no peito lubrificado de suor e brilho natural.
RuPaul aproveitou o palco maior, brincou com os jurados, conversou com as mães das três finalistas e abriu mão de outros protocolares. Para a season 16, o clima de felicidade e bom humor negou a entrega do Golden Boot, para o pior look da temporada. Afinal, para o elenco que rendeu briga do Ateliê ao Untucked ao Twitter ao bar Roscoe’s, um pouco de simpatia e boa energia não vai mal.
Madura na forma como desenhou a trajetória de suas finalistas – e de queens como Morphine e Q, a 16ª temporada de RuPaul’s Drag Race trouxe certo sabor há muito deixado de lado pela produção. Break My Soul, Control e I Wanna Dance With Somebody foram algumas das canções dubladas, enquanto o painel de jurados recebeu presenças ilustres e marcantes: Charlize Theron, Sarah Michelle Gellar, Icona Pop, Law Roach, Joel Kim Booster e Ronan Farrow se conectaram às competidoras, servindo humor e comentários pontiagudos.
Também responsável por quebrar algumas tendências, como a da vencedora do desafio político, a Corrida de Nymphia Wind brincou com o multiverso de Drag Race quando chamou para o Makeover os dançarinos do show de Vegas. Importante lembrar que a WOW+ está transmitindo uma temporada especial, focada nos bastidores do espetáculo. A Reunião trocada pelo Lalaparuza também sinaliza um teste voltado à marketibilidade do programa.
E se, no futuro, seasons pequenas foram aprovadas e focarem em desafios específicos, como torneio de Dublagens ou Show de Talentos? Um elenco de comediantes fazendo o Roast ou retornando com personagens icônicos do Snatch Game? Para RuPaul, que mira o palco global, já anunciou a data de estreia do All Stars 9, e voltou o ano para a turnê literária, com direito a desafio para rimar com o lançamento de A Casa dos Significados Ocultos, o mundo continua sua ostra. E o teto não representa limite algum.
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