Sempre que perguntavam para Cartola de onde ele vinha, ele respondia “de Mangueira”. A resposta parece simples, mas tem muito significado – pelo menos é o que explica o professor Luiz Antônio Simas, historiador, escritor e um dos entrevistados do documentário Não Vamos Sucumbir.
Dirigido por Miguel Przewodowski e produzido pela 3 Tabela Filmes, o filme que ficou em cartaz nos cinemas da cidade maravilhosa pode ser muito bem sintetizado pela história que Simas conta: para Cartola, Mangueira era muito mais do que o local onde morava; era seu morro e sua escola de samba do coração; era sua essência e sua identidade; era onde as rosas se mantinham em silêncio e o verde e rosa se encontravam.
Por isso, quando as luzes da Marquês de Sapucaí se acendem e a maior festa popular do planeta começa, não é apenas o resultado de um ano de preparação que invade a avenida; são décadas de tradição que refletem as transformações político-culturais da sociedade brasileira e unem a ferro e fogo uma escola de samba e sua comunidade.
Com isso em mente, Não Vamos Sucumbir parte de uma linha do tempo atravessada pela pandemia – entre o desfile pandêmico de 2020, a suspensão de 2021 e a retomada em 2022 – para revisitar o passado e compreender o presente dos barracões e das quadras através de entrevistas com alguns dos grandes nomes que rodeiam o carnaval carioca.
Defendendo a legitimidade da festa enquanto manifestação popular e política, o diretor, inicialmente, centraliza no carnavalesco a figura de criador e condutor das narrativas apresentadas anualmente pelas escolas. Dessa forma, a câmera de Przewodowski adentra o barracão da Paraíso do Tuiuti para conversar com João Vitor Araújo, à frente da escola de São Cristóvão para o carnaval de 2020.
Único carnavalesco negro a assinar sozinho um desfile naquele ano, João Vitor discute os efeitos do racismo nos espaços de comando da festa. Apesar de ter berço europeu, foi a herança negra das periferias cariocas que definiu o carnaval como conhecemos hoje, resultado direto das manifestações culturais da população africana escravizada no Brasil. Do samba-enredo às alegorias, dos componentes à bateria, a digital que marca a festa é preta; no entanto, seu alto escalão está embranquecido há décadas – uma realidade que as escolas de samba e suas comunidades vêm buscando alterar.
Dessa forma, Não Vamos Sucumbir faz um trabalho de resgate das origens do evento, fortalecendo a memória de nomes como Ismael Silva e sua Deixa Falar e aqueles que moldaram o carnaval como conhecemos hoje – com direito a uma palhinha da saudosa Rosa Magalhães e um depoimento riquíssimo de Luiz Fernando Reis. O resultado é um documento de registro de uma história que circula na oralidade popular das escolas enquanto grandes transmissoras de conhecimento e de ancestralidade, mas que carece de valorização enquanto espaço de movimentação política e de preservação de identidade.
Esse, na verdade, é um dos principais aspectos do carnaval abordados no documentário: a arte de, todo ano, levar à avenida personagens e movimentos da história do Brasil que foram apagados da narrativa oficial e renegados às notas de rodapé dos livros didáticos. Só em 2024, as escolas de samba trouxeram para a Sapucaí a vida de figuras como João Cândido, Rás Gonguila, Luíza Mahim e Alcione, além de exaltar a cultura do povo Yanomami e viralizar livros como “Um Defeito de Cor”, de Ana Maria Gonçalves, e “Nosso Destino é Ser Onça”, de Alberto Mussa.
E em 2019, primeiro ano de mandato de um presidente autoritário que usava do revisionismo histórico para justificar seu racismo e seu preconceito, o desfile campeão da Mangueira conseguiu fazer ressoar “a história que a história não conta”. Tratado no filme de Miguel Przewodowski como um dos mais importantes manifestos dos últimos anos, o enredo “História de Ninar Gente Grande”, assinado por Leandro Vieira, cutucou a estruturação da memória coletiva com seu samba crítico e suas alegorias marcantes.
Não à toa, o próprio Luiz Antônio Simas caracteriza o carnaval como um “fato social completo”. A catarse da experiência de construção coletiva, da integração da comunidade e da transformação dos entornos de uma escola de samba. Não acredita? Então assista as imagens da quadra do Salgueiro e sua bateria Furiosa capturadas pela equipe do documentário. E esse é talvez um dos grandes méritos de Não Vamos Sucumbir: entender o poder que esses espaços emanam e, simplesmente, mostrá-los.
Por isso, além das próprias imagens captadas nas preparações dos desfiles, nos barracões e nas quadras, o filme ainda joga na nossa cara cenas clássicas do carnaval carioca, como o Cristo mendigo coberto de sacos de lixo da Beija-Flor de 1989, protagonista do enredo “Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia” que foi censurado pela Arquidiocese do Rio de Janeiro e desfilou com uma grande faixa com os dizeres “Mesmo proibido, olhai por nós”.
Aos berros de “Momento glorioso! Impeçam o que o povo tá mostrando se tiverem coragem!” de Fernando Pamplona nos comentários, os componentes arrancam os sacos plásticos, expõem a alegoria no desfile das campeãs e, claro, fazem história. Até hoje, o afronte de Joãosinho Trinta é reverenciado no meio do carnaval – uma comunidade que valoriza em especial a trajetória dos que vieram antes de nós e do que graças a eles foi construído.
Dessa forma, Não Vamos Sucumbir não se acanha em explorar todas as contradições e complexidades que envolvem o microcosmos das escolas de samba – às vezes de forma frenética demais, inclusive. O filme se costura em blocos implícitos da mesma forma que um desfile na Sapucaí, amarrando-se com o enredo principal em diversos subtemas que atravessam essa realidade e criam 92 minutos de muito samba, resistência e tradição. Tradição viva, em movimento, em transformação.
“Não existe tradição estática. O que é estático morre. Tradição vem da ideia de elo, é aquela coisa que aponta pra frente. Tradição é aquele elo que você coloca na corrente pra prosseguir, não é pra ficar parado.” – Luiz Antônio Simas
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