Eu queria poder dizer que não sei mais o que escrever sobre Arcane, mas essa não é bem a verdade. Ao longo das últimas três semanas eu me inseri de corpo e alma na saga animada de League of Legends contada pelo estúdio Fortiche e distribuída pela Netflix. Nos últimos três anos, eu me pegava constantemente pensando no capítulo final da primeira temporada, em como seu momento final havia quase que redefinido o poder que um season finale pode ter. Várias faixas de sua trilha sonora continuavam a fazer seu caminho em minhas playlists e a aparecer nas minhas retrospectivas anuais. Mesmo em sua ausência, Arcane foi fazendo para si um canto especial no meu coração. E agora, ela acabou.
O problema não é que eu não sei o que dizer sobre o terceiro e último ato da segunda temporada, mas sim que eu quero dizer tudo. Quero falar sobre seus personagens que maravilhosamente desabrocham em lendas próprias, sobre como suas músicas criam uma identidade sonora tão absurdamente autoral e diferente de qualquer outra coisa que eu já ouvi. Quero passar parágrafos inteiros falando sobre os diferentes estilos visuais que foram sintetizados nessa impensável colcha de retalhos. Poderia deixar vocês enjoados de tanto ouvir sobre como cada minuciosa escolha feita por seus animadores caracteriza Arcane como uma das melhores séries animadas já feitas.
Também gostaria de falar sobre como eu desejo desesperadamente que a série tivesse tido bem mais temporadas para que seu final não tivesse vindo tão apressado. Gostaria de passar um texto inteiro escrevendo sobre como até mesmo seus personagens mais secundários poderiam ter sido desenvolvidos em enredos tão complexos e interessantes quanto seus designs. Gostaria de expressar minha frustração sobre como sua narrativa de conflito de classes é previsivelmente resolvida através de um inimigo em comum, sacrificando sua nuance em prol do espetáculo.
Porém, quero mais do que tudo escrever sobre a saudade que Arcane vai deixar.
O terceiro ato começa com a tão aguardada explicação sobre o paradeiro de Ekko (Reed Shannon), Heimerdinger (Mick Wingert) e Jayce (Kevin Alejandro) após estes terem sido teletransportados pela anomalia. Enquanto o Garoto Salvador e seu novo mentor foram parar numa idílica realidade alternativa, Jayce é lançado no futuro distante, após um cataclisma de sua própria criação ter dilacerado o mundo, explicando seu estado selvagem no ato anterior. É uma escolha um tanto ousada abrir o trio final de capítulos com um episódio tão reflexivo, considerando o encerramento do ato anterior, mas é uma escolha que recompensa o envolvimento que possuímos com esses personagens, oferecendo alguns dos momentos mais deslumbrantes do seriado.
Em sua nova realidade, Ekko dá de cara uma série de rostos familiares e têm de aprender a confiar em pessoas que antes eram suas inimigas. A cadeia de sofrimento e os ciclos de violência cercam seus personagens, e a dimensão alternativa oferece a Ekko a oportunidade de olhar de fora, vendo como seria possível viver num mundo livre de tais amarras. Reed Shannon oferece uma das performances derradeiras da série, interpretando um garoto que teve que crescer cedo demais finalmente vendo o futuro que ele sempre lutou para ter, ao mesmo tempo que silenciosamente aceita que não é um futuro que pertence à ele.
Jayce, em contrapartida, cai numa realidade onde a ambição de Viktor (Harry Lloyd) por um mundo livre da dor e da morte resultou em uma terra devastada e dominada pela fria certeza do aço. Lá, ele machuca a sua perna e fica preso por meses em um fosso escuro, sozinho a não ser por vermes e estranhos seres vazios que parecem saídos diretamente de Aniquilação (2018). Ele eventualmente encontra o homem que o iniciou em sua busca para dominar a magia, lhe oferecendo uma visão profética do que está por vir caso ele falhe. Até então visto como responsável pela tragédia no final do episódio anterior, Jayce ganha contornos mais simpáticos, assim como um novo visual que melhor representa sua resiliência. A ferida em sua perna é um lembrete constante do que ele deve ao seu antigo parceiro de laboratório, sinal indelével da conexão cósmica entre ambos.
É interessante notar que, diferente de obras como Homem-Aranha no Aranhaverso, Arcane não tenta diferenciar suas dimensões através de estilos de desenho radicalmente diferentes, mas por mudanças mais sutis: no futuro pós-apocalíptico, há vários planos gerais que permitem que tanto Jayce quanto a audiência fiquem imersos na solidão absoluta e silenciosa daquele lugar. Na versão “perfeita” de Zaun, essa mesma câmera se mantém trancada na perspectiva de Ekko, que parece incapaz de absorver tudo que há ao seu redor. É uma versão mais vibrante e clara da Subferia que nós conhecemos, mas o rapaz frequentemente anda com a cabeça abaixada, temendo que caras novas irá encontrar.
Pouco após chegar, Ekko percebe que Heimerdinger passou muito mais tempo lá do que ele, e é um habitante mais frequente daquele lado da cidade do que jamais foi em seu próprio universo. Apesar de receber pouco tempo de tela, Mick Wingert empresta sua voz à uma das melhores músicas da trilha sonora, Spin The Wheel, uma balada humilde de viola que fala sobre aceitar as cartas que lhe foram dadas e dar o seu melhor no longo jogo da vida. É um momento adorável que conecta as duas jornadas que acontecem ao longo do episódio e ainda servem como epítome para o destino final do antigo professor, atormentado por suas falhas anteriores com seus pupilos.
Talvez a maior e mais imediata mudança dessa dimensão para àquela da qual Ekko vem seja a presença de Powder (Ella Purnell), que lá nunca se transformou em Jinx. É outro momento em que a série poderia apenas se escorar na excelência de seus designs para significar as diferenças entre as personagens, mas a atriz britânica Ella Purnell vai bem além: a entrega das linhas de diálogo é tão balanceada e sutil que, por um segundo, parece realmente que estamos vendo uma outra personagem em cena. É uma das várias performances da narrativa que surpreende pela nuance que oferece aos personagens e aos seus arcos. E também dá a oportunidade da trilha sonora brilhar com a eletrizante Ma Meilleure Ennemie, um verdadeiro hino à todos os amantes do famoso clichê de enemies to lovers.
De volta à realidade principal, Mel (Toks Olagundoye) se liberta de seu confinamento nas mãos da Rosa Negra e descobre seu poder inato de tocar no Arcano e usar a energia de seus inimigos contra eles mesmos. Ela volta à Piltover na esperança de impedir que Ambessa (Ellen Thomas) abuse do poder de Viktor para cimentar o seu legado, mas encontra uma cidade exausta por tantas lutas. Vi (Hailee Steinfeld) se recupera de seus ferimentos e tenta tirar satisfações com Caitlyn (Katie Leung) sobre sua irmã, confrontando-a por seus atos autoritários. É um momento que merecia mais tempo para se expandir, mas que graças ao ritmo vertiginoso de sua narrativa é obrigado a ser contido em apenas uma troca rápida de farpas entre as duas. Há tantas cenas nessa temporada que parecem abrigar sentimentos maiores do que si próprias que é um pequeno milagre que a maioria delas seja capaz de suportar tamanha emoção.
Seja como for, o oitavo e penúltimo episódio oferece breves respiros para que seus personagens reflitam sobre as escolhas que os trouxeram até este momento, com identidade sendo o tema principal explorado nesse trio de capítulos. Quando Arcane está perto de acabar, ela decide olhar para dentro e fazer cada personagem questionar seu papel naquela história. Isso fica claro na visão que Jinx tem enquanto está presa, mais afetada pelo sacrifício de Isha do que jamais a vimos. Lá, uma versão de Silco (Jason Spisak) que talvez apenas ela realmente conhecia aparece, entregando um monólogo que talvez fale mais sobre a própria Jinx do que sobre ele:
Matar é um ciclo. Um ciclo que começou muito antes de Vander e eu. E continuará muito depois de vocês duas. (…) Construímos nossas próprias prisões. Barras forjadas de juramentos, códigos, compromissos. Muros de insegurança e limitações aceitas. Habitamos essas celas, essas identidades, e as chamamos de ‘nós.’ Pensei que poderia me libertar eliminando aqueles que considerei meus carcereiros. Mas… Jinx, eu acho que o ciclo só termina quando você encontra a força para ir embora.
Depois desse episódio, aptamente intitulado Killing is a Cycle, fica mais fácil olhar para trás e perceber que Arcane sempre foi, em um nível ou outro, uma série sobre pais e filhos. Como a antiga geração sempre ambiciona deixar para trás um mundo melhor para os que vierem depois, mas que no meio desse desejo há um ego que não se cala e, eventualmente, nos corrompe. A “força para ir embora” que a visão de Silco se refere não representa necessariamente uma fuga ou uma desculpa para aceitar as injustiças à sua volta, mas sim um conselho valioso que só pode vir da experiência: a coisa mais difícil que você tem que fazer na vida é perdoar. Difícil porque significa renunciar parte da sua identidade sem esperar algo em troca, trocar a lógica da retribuição pela possibilidade de graça, de que o ciclo possa ser quebrado. Envolve uma porção de fé para consigo mesmo e para com o próximo que é difícil de resgatar uma vez que se é perdida.
Vi e Caitlyn, afetadas por essas reflexões, também resolvem suas diferenças no que só pode ser descrita como uma das cenas mais esperadas da série inteira e que não deixa nada a desejar, usando detalhes minuciosos para expressões de intimidade que pouquíssimas animações são capazes de transmitir. Orquestrada tão belamente quanto as cenas de ação, é um dos grandes clímaces do seriado, representando a quebra dos vícios que impediam ambas as personagens de ficarem juntas e de escolherem olhar para o futuro ao invés do passado.
Com essa perspectiva, Arcane também estabelece o conflito maior de sua existência: com Viktor completamente corrompido pelo uso de Hextec, ele acredita firmemente que uma última e “gloriosa evolução” seja a única coisa capaz de salvar a humanidade de si mesma, unindo todas as suas consciências em uma única certeza absoluta, livre de discordância ou identidade. Ao longo dessa temporada vemos vários de seus personagens tendo que assumir papéis diferentes e sofrendo por conta deles. A última e final luta é travada não para defender esses papéis, mas para afirmar a possibilidade de que eles sejam capazes de mudar. Vemos habitantes de Zaun escolhendo usar as cores de Piltover por cima de si mesmos para defender essa possibilidade, e a série faz um bom trabalho em caracterizá-los bem o suficiente para que toda morte seja sentida no peito.
Com as linhas de batalha traçadas, cabe ao último episódio resolver os conflitos remanescentes, que envolvem tanto as divisões políticas entre Zaun e Piltover quanto a ameaça iminente de uma invasão militar que irá levar ao futuro sombrio profetizado por Jayce. Como era de se esperar, não há tempo o suficiente para dramatizar todos os aspectos desses conflitos, então Arcane faz o que sabe fazer melhor e dá a seus personagens a tarefa de carregar os temas essenciais dessa batalha. De um lado, Viktor sacrifica os últimos resquícios de sua humanidade, curando os soldados noxianos de Ambessa daquela mais comum das aflições: a morte. Em Piltover, a resistência formada pela união das forças das duas cidades é robusta, mas ainda sim repleta de tensão e desconfiança.
Nos primeiros momentos dessa batalha, o seriado faz uma escolha consciente de tirar o brilho dessas batalhas e apresentá-las sobre uma perspectiva ao nível do chão, acompanhando os vários soldados que correm pelo campo de batalha com urgências diferentes. Vi usa suas manoplas gigantes para resgatar feridos no campo de batalha e a mira perfeita de Caitlyn busca alvos estratégicos numa visão elevada. Os vários membros do esquadrão formado para capturar Jinx voltam a aparecer, buscando atrapalhar o progresso de Ambessa, que parece ter preparado contingências para todas as situações. É uma sequência tensa, repleta de escolhas interessantes de como posicionar a câmera invisível no contexto de seus personagens e que se assemelha muito mais a um filme de guerra do que à fantasia steampunk abordada pela série.
É apenas com a chegada de Mel, Jinx e Ekko que a maré vira em direção aos defensores, que entram com o pé na porta e mostram o espírito de Arcane ao exército estrangeiro. Os Fogolumes ziguezagueiam pelo ar indo de cima à baixo, funcionando como o fio condutor das várias lutas que acontecem. Nesse momento, a série muda de marcha e deixa de ser Nada de Novo no Front para virar algo mais parecido com O Retorno do Rei, dirigindo magistralmente o foco entre os conflitos e encaminhando cada um deles para sua fatídica conclusão. Assim que Come Play começa a tocar diegeticamente através dos alto-falantes do balão de Jinx, você sabe que está vendo uma das melhores sequências do ano. É exuberante, criativa e frenética.
Mas assim como no final de O Senhor dos Anéis, a conclusão definitiva não se dá por meio da violência da guerra, mas pela violência de palavras. Viktor, agora sob a máscara inumana do arauto das máquinas, se encontra com Jayce no núcleo do Hexgate, onde ele irá adquirir poder suficiente para espalhar sua evolução para o resto do mundo. Arcane faz a escolha sábia de focar não apenas em visuais de cair o queixo para dramatizar o conflito entre esses homens tão semelhantes em suas diferenças, mas se preocupando em fazer com que o diálogo entre eles seja tão arrebatador e impactante quanto os tiros que estão sendo trocados em outras cenas. Se o vínculo entre Vi e Jinx representa o coração da série, é na última cena entre Viktor e Jayce que entrevemos a sua alma, e ela é linda.
Em uma épica em que somos cada vez mais pressionados à consumir conteúdo feito por algoritmos e à aceitar a presença de ferramentas como IAs generativas na produção de arte, Arcane é praticamente um manifesto. Uma produção tão humana em sua potência e engenhosidade que fica claro que a batalha pela individualidade na mídia só será perdida quando não houver ninguém para lutá-la. Porque é impossível assistir uma animação assim e genuinamente achar que o futuro do entretenimento está nas mãos de investidores do Vale do Silício.
Na semana passada eu escrevi sobre como sentia medo que, em sua ambição, Arcane fosse esquecer de ser boa, mas eu não poderia estar mais enganado. O seriado toma consciência terrível de suas limitações e prepara um final que abraça sua imperfeição e escolhe entregar suas personagens ao futuro incerto enquanto prepara o terreno para as próximas adaptações do universo criado pela Riot Games. Algumas de suas conclusões são mais curtas do que deveriam, mas a verdade é que parece que nenhum tempo seria o suficiente para apreciar a criação gigantesca da Fortiche e seus efeitos sobre a indústria de animação. É frustrante dizer adeus tão cedo, mas Arcane dá a última palavra e se despede com confiança:
Eu sou a terra sob as suas unhas, docinho. Nada vai me limpar.
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