Valesca Popozuda nunca escondeu sua verdade musical. Em PROIBIDONA, parceria erguida em 2023, com Gloria Groove e Anitta, a síntese do trabalho de Valesca não poderia aparecer de forma mais precisa. “Meu nome é Valesca, eu dou aula de putaria”, canta a veterana carioca, em um de seus versos mais tranquilos. Consolidada na indústria fonográfica brasileira, com carreira catapultada principalmente pelo sucesso de Beijinho no Ombro, a cantora de fato acompanha, mas não se rende por completo às normas de criação do mercado musical.
De Volta Pra Gaiola: Amor de Verdade e Amor talvez seja a expressão máxima desse respeito às próprias vontades. Se Anitta, a título ilustrativo, ousa, hoje em dia, com as letras explícitas de Savage, São Paulo e Capa de Revista, é Valesca quem, desde cedo, dá “tiro, porrada e bomba” na censura de um bom senso moralista. Ao lançar seu primeiro disco – ou a reunião de dois EPs, dependendo dos critérios avaliativos de cada ouvinte –, Valesca não tem medo de não vender. Em bom Português, a putaria come solta na gaiola da popozuda mais carismática do Brasil.
Esta não é, contudo, a primeira vez que Valesca reencarna a vocalista do grupo Gaiola das Popozudas – aquela cuja marca registrada é, justamente, o funk proibidão. Em 2019, já era possível ouvir o trabalho conciso, com pouco mais de 10 minutos, do EP De Volta Pra Gaiola: um lançamento também coeso, por estar bastante centrado no “pancadão” de antigamente. Agora, não só os gêneros musicais são mais diversos, como também o número de faixas e a duração do novo projeto se ampliam, aproximando o trabalho dos parâmetros técnicos que definem um álbum musical.

Ao longo da carreira, Valesca Popozuda experimentou de tudo. Após a explosão de Beijinho no Ombro, flertes com um pop mais light, como Eu Sou a Diva Que Você Quer Copiar, Boy Magia e Pimenta, foram apostas recorrentes na discografia da funkeira. A ascensão do TikTok, por outro lado, trouxe lançamentos um tanto quanto padronizados, como PayPau e Mó Negoção. Mas o duplo sentido nunca foi deixado de lado: algo bastante evidente em singles como Fada Madrinha e Presentinho. A letra explícita de Meu Ex, a continuação de um antigo hit em Tô Solteira de Novo e as características gaiolas gigantes nos videoclipes de Faz Direito e Eu Vou Pro Baile Tacar, por sua vez, comprovam que resgatar a Gaiola das Popozudas não é mero jogo de marketing de 2019, tampouco de 2024.
Sempre atenta ao presente, ao mesmo tempo em que celebra o passado, Valesca dá a De Volta Pra Gaiola: Amor de Verdade e Amor o direito de existir. Não que a cantora não utilize as redes sociais ou o apoio dos fãs para promover as novas músicas. O diferencial, neste caso, é a antiga falta de preocupação com limites de palavrões ou mensagens sexuais diretas nas faixas do disco – algo que nem as televisões e rádios mais progressistas conseguem digerir ainda. Embora exista, a viralização, aqui, permanece atrelada a um nicho menor de fãs da música popular.
No fim, a liberdade é o guia explícito de Popozuda. “Saber o que seu corpo faz e resolver que você manda nele é o símbolo do meu legado até aqui”, analisa a cantora em Intro escrita por Hana Khalil. O fogo está mais do que aceso em Amor de Verdade, metade explícita do novo álbum. “Agora eu sou piranha, porque não tem uma única pessoa no mundo capaz de controlar o meu tesão”, transborda a introdução, preparando território para a jornada mais ousada e divertida do projeto.
Em um pagode que provavelmente não tocaria no almoço familiar de domingo, Valesca mostra, finalmente, a que veio. “Tô com saudade de uma bela rola, grande e grossa, me botando com vontade”, introduz Pagodin, faixa mais reproduzida do disco. Apesar da curta duração da música, em consonância com os padrões do mercado atual, a liberdade de verbalizar, sem frufrus, os próprios desejos atua como expurgo de qualquer repressão sexual possível. A ausência de papas na língua, ou de meias palavras no repertório, é o que traz honestidade e força para o que Valesca deseja cantar: o desejo carnal bem resolvido.
A bissexualidade da cantora, por exemplo, não poderia ser retratada de maneira mais nítida: “Acordei molhada, com tesão e xoxota no pensamento/Cheirinho de buceta no vento”. Nos versos de XXT na XXT, parceria firmada com Ya Malb, Popozuda não tem medo de cravar que, em muitas relações, o sexo “não tem pica dentro”. Se essa franqueza de composição pode assustar, ou até mesmo escandalizar muita gente, Valesca quer apenas experimentar o que o mundo e a música têm a oferecer. Não à toa, alguns recursos estéticos são sutis, mas cumprem papéis curiosos no álbum: há uma voz distorcida que repete os verbos “metendo, gozando” na faixa 12 Horas; voz essa que se torna, conscientemente ou não, um novo instrumento musical.
Em alguns casos, é inevitável pensar “que dèja vu” – trecho que aparece na própria letra de Merci Beaucoup. Ainda que MC Fernandinho FN se pareça muito, vocalmente, com o pai, Mr. Catra, é improvável acreditar que a canção vá repetir o sucesso da irreverente Mama. Sem essa comparação, no entanto, é possível relevar a falta de identidade bem definida do MC – que mais parece um sósia do próprio pai –, ou a possível distorção exagerada na voz do artista. Afinal, versos como “Te prometo foda eterna/Morar no meio das tuas pernas/Você é a pussy certa” podem até não soar rebuscados, mas trazem um quê de romantismo e tesão de modo bem sincero.

Ainda nos recursos excitantes, Chaminé está repleta de explosões que acompanham os versos “Ai, deixa dentrão e não sai/Bota no fundo e não tira/Se tá com bala no pente, mira no cuzinho, engatilha e atira”. Essa sonoridade explosiva se aproxima de gemidos discretos, embora honestos, que parecem buscar uma espécie de orgasmo musical. Mas as broxadas também têm seu lugar no disco. Ao repetir a parceria com MC GW, um tanto quanto frutífera em 12 Horas, Meu Negão parece não acrescentar muitas nuances no projeto. Talvez seja apenas uma faixa ofuscada pela ousadia e experimentação do restante da tracklist.
Se Amor de Verdade se apresenta como o recanto da liberdade sexual denotativa, a segunda metade do álbum, Amor, conforta o coração dos fãs mais recatados. É o padrão de Valesca: Meu Ex (Light), Carnavalesca: De Volta pra Gaiola e as versões clean das músicas antológicas da Gaiola das Popozudas foram algumas das alternativas que a cantora sempre encontrou para atingir diferentes mercados e agradar a diferentes públicos. Desta vez, não seria diferente. Isto é, todas as canções explícitas de Amor de Verdade tentam ser mais comportadas na parcela do disco que cheira a baunilha e público moralista.
A Intro (Clean), igualmente escrita por Hana Khalil, mais parece uma publicação clichê da página Quebrando o Tabu – o que não é necessariamente ruim, tendo em vista o crescente conservadorismo dos últimos anos. “De forma inconsciente, ouvir uma voz feminina falando sobre prazer causa desconforto”, alerta Valesca, em texto de tom bastante didático. Quando uma veterana na posição de Valesca ainda precisa lançar versões lights de seus trabalhos, a fim de alcançar determinados ouvintes, a citação anterior torna-se autoexplicativa.

Não é preciso ir longe. Para participar da novela Mania de Você, da Rede Globo, Valesca apresentou uma versão clean de Pagodin – sonoramente diferente da versão contida no álbum, apesar de carregar a mesma letra comportada. Por mais que seja compreensível e útil, o Amor do disco de Popozuda não se mostra tão natural quanto o desbocado Amor de Verdade. Até porque um amor verdadeiro geralmente não despreza uma safadeza consentida. A título de comparação: se, no primeiro Pagodin, “a xota pisca, o cu delira”, no segundo, os versos soam forçados ao se tornarem “Sabe, eu pisco/A Val delira”.
Algo mais absurdo aparece em XXT na XXT (Clean), que transforma “De mulher pra mulher, nossa foda não é brincadeira” em “De mulher pra mulher, nosso chá quente é na chaleira”. Ou em 12 Horas (Clean), que sequer esconde o corte abrupto após o trecho “calma, respira, relaxa, sustenta” – uma mistura de aproveitamento da gravação original e explícita com o gosto amargo de saber que os versos “Botação de qualidade/Essa cretina não aguenta”, em determinadas situações, ainda precisam ser censurados. Diante dessas adaptações meio trágicas, meio cômicas, é possível se divertir ao menos com os versos de Meu Negão (Clean): “Que mulher perfeita, da sentada surreal/Fazendo cara de quenga de uma forma triunfal”.
A reunião de EPs de Valesca Popozuda talvez não tenha a mínima intenção de se projetar como um único álbum. Mas a supervisão criativa da cantora no projeto é um elemento assumidamente novo em uma carreira de longa data. Apesar de brilhar mais em sua vertente explícita, pela liberdade que naturalmente evoca, De Volta Pra Gaiola: Amor de Verdade e Amor consegue se comportar como uma obra fechada, de poucos excessos – e repetições perfeitamente justificáveis. Ao retornar com mais fôlego às origens artísticas, Valesca renova suas referências musicais, ao mesmo tempo em que se consolida como a grande definidora dos próprios caminhos.
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