Fazia calor em Beberibe, cidade do interior do Ceará onde Karim Aïnouz gravou Motel Destino. A busca pelo cenário correto foi extensa, mas encontrou no estabelecimento local o palco ideal para o filme, um mistério arredio. Depois de competir em Cannes e abrir o Festival de Gramado, a estreia nacional acalenta a audiência, sedenta pelo erotismo latente da filmografia do cineasta.
O suor lubrifica as emoções de Heraldo (o estreante Iago Xavier), que divide a rotina entre farrear com o irmão e trabalhar para uma chefona do crime. A realidade bate à porta justamente quando ele deixa a guarda baixa e, despido no motel-título, perde a hora e vê o futuro estilhaçado à beira da estrada. Não resta outra opção: ele vai penetrar o local que o marcou.
O Motel Destino é assombrado e abençoado pelos gemidos de prazer dos diversos clientes, enfileirados num corredor de suítes. Lá, Dayana (Nataly Rocha) coordena o negócio, que divide com o marido Elias (Fábio Assunção), um sudestino casca-grossa que foge do passado miliciano da capital carioca e busca no Nordeste um terreno para liberar demônios e alimentar vícios.
O trio se entrosa sem demora, com tensão para dar e vender. Sob a direção de Aïnouz, amparado pelo roteiro que co-escreveu com Wislan Esmeraldo e Mauricio Zacharias (de Passagens e O Céu de Suely), o filme se banha nas fontes de mistério e paranoia do Cinema de Pasolini e De Palma, grandes inspirações tanto para o clima de sedução, quanto para a vertente sádica que mata o desejo e o transforma em cicatriz.
No centro do escopo tragicômico do retorno do diretor ao Brasil, Iago Xavier divide seu Heraldo entre a inocência da pouca idade e a perseverança que cultiva desde a infância. Melhor ainda, enxerga em Dayana uma semelhante na luta por emancipação e o contrato perfeito da solidariedade que ronda a produção. Em Motel Destino, os olhares são vitais para que as ações se deem.
No ritmo de corpos em ebulição física e sensorial, o filme esquematiza o sexo e o contato na base da unção, prestigiando seus personagens com a liberdade advinda do motel como ambiente. Depois da entrada, com seus portões vagarosos e barulhentos, tudo é permitido. Somem os pudores, morrem as fachadas. Entre o atrito e a fricção de peles, Heraldo, Dayana, Elias e companhia são postos à prova mundana, sem julgamento divino ou moral.
E o que a equipe técnica faz para demonstrar de cara o potencial macabro e santificado do motel vale elogiar. A direção de fotografia de Hélène Louvart (A Filha Perdida e La Chimera) alucina junto do calor desmedido, encontrando ângulos e passagens cabíveis numa trama fadada ao trágico. A montagem de Nelly Quettier (Annette e Lazzaro felice) mistura homens e bestas na eterna luta por individualidade e sossego; é tão desconcertante quanto hipnótico.
O trabalho de produção, que tem em Marcos Pedroso (Que Horas Ela Volta?) o responsável pelo design de cenários, é posto em harmonia aos figurinos de Ananda Frazão (Medusa) e ao departamento artístico de Ingra Rabelo (Estranho Caminho). As cores estão em mistura eterna de fogo e cinzas, enquanto os mais diversos cacarecos e adereços tornam o Motel Destino um lugar tão real quanto surreal. Ali, acontece de tudo: amor, morte, sexo, traição e selvageria.
A lascívia de Karim, que coloca Heraldo até para encapar uma cobra que invade o local, é pressentida e exalada pelo elenco. E se Xavier e Rocha atuam mais para o lado virginal da história, Assunção assume um vilão difícil de engolir e mais complicado ainda de descamar. Por mais que o filme caia num espiral de lentidão da metade para a frente, com os personagens rodando em falso suas resoluções individuais, o mergulho nesse submundo de caos é glorioso.
Na coletiva de imprensa realizada no Reag Belas Artes, o contentamento da equipe estava evidente desde antes da primeira pergunta, quando diretor, produtores e atores desfilaram todos de óculos escuros. Da presença marcante do tapete de Cannes, depois de uma aparição no gélido Gramado, em São Paulo, o papo foi leve e cheio de humor. Com espaço até para Xavier elucidar questões léxicas que ensinou à Assunção durante as gravações.
Tratando-se de um filme feito no Ceará e “falado em cearense”, foi a volta às origens de Karim, que não filmava onde cresceu desde Suely (Praia do Futuro, de 2014, foi meio a meio, entre o Brasil e a Alemanha). Afastado do país desde o golpe e a eleição de 2018, o diretor rodou Firebrand na Europa e sentiu a necessidade iminente e a fome de voltar para o calor que o moldou, entre as praias do Morro Branco e das Fontes.
Com a vontade de continuar a saga do Destino em uma série que passeará pelos gêneros cinematográficos, Karim grava novo filme no exterior e planeja uma trilogia cearense depois, com sinopses para lá de instigantes. E se o Motel de verdade precisou ser fechado pelos meses de gravações, causando uma seca em Beberibe, é notório que o lançamento do filme reacende a chama desse Cinema de vontade, onde o cafona não se acanha ao puritanismo e o diretor, versado nas relações de afeto e liberdade, exuma cada um dos desejos.
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