Riri Williams não nasceu em berço de ouro ou herdou poderes especiais ao acaso. Ela se dedicou para ser reconhecida, e nem a bênção da rainha de Wakanda foi suficiente para que sua armadura e intelecto evoluíssem ao ponto do heroísmo. Quando Coração de Ferro começa, a protagonista ganha dinheiro vendendo lição de casa, é pega pela reitoria do MIT e mandada para casa.
A estreia no MCU, ofuscada pela avalanche narrativa de Pantera Negra 2, ganha respiro em Chicago, onde a inventora se reconecta à mãe (Anji White) e precisar encarar o luto, abafado há cinco anos desde o tiroteio que matou o padrasto Gary (LaRoyce Hawkins) e a melhor amiga Natalie (Lyric Ross, a Deja de This Is Us).

Sem financiamento ou projeção de melhorar, Riri fuça em lixões e recebe o convite suspeito, mas tentador de John (Manny Montana), parceiro de crime de Parker Robbins, um jovem de capa de couro que mantém operando uma equipe especialista em roubos, invasões e todo tipo de suborno.
Aqui, Coração de Ferro dedica tempo e sentimento aos personagens: uma dupla de irmãos versada em combate (Zoe Terakes e Shakira Barrera), uma pirotécnica apaixonada por explosivos (Sonia Denis), uma ex-drag queen hacker vinda de Madripoor (Shea Couleé) e o próprio chefe da parada toda, que responde a alcunha de O Capuz (Anthony Ramos) e caminha por aí como um vilão latino sedutor e extravagante.

No embate entre a emoção (e a ética) e a razão (a necessidade de dinheiro para não enferrujar suas ideias), Riri é agente do caos. Conhece, por acaso, a figura de Joe McGillicuddy (Alden Ehrenreich), um cara de autoestima baixa e pouca vontade de viver, que foge ele mesmo de um passado violento e manchado. De sobra, consegue um bunker munido das melhores e mais perigosas – e ilegais – tecnologias.
Criada por Chinaka Hodge, roteirista da natimorta O Clube da Meia-Noite, Ironheart foi alvo dos ataques racistas da internet, que bombardeou a produção com resenhas e avaliações pífias; a Disney, buscando minimizar o prejuízo, lançou os seis episódios ao longo de duas semanas, e pouco fez no trabalho de divulgação.
Pena dela, que desperdiçou o potencial fantástico da odisseia de Riri, uma adulta em formação que escorrega nos acertos que ensaia e patina nos erros que busca redimir. Na gênese, a criação involuntária de uma IA baseada na amiga morta Natalie, que atende por N.A.T.A.L.I.E.,como boa herdeira do legado de Tony Stark, a série cria intrigas familiares e sentimentais que são alavancadas pela entrega da protagonista,

Dominique Torne é impulsiva e frágil em medidas equivalentes, depositando as forças e as esperanças na família escolhida que agrupou. Xavier (Matthew Elam), irmão de Nat e possível paixão de Riri, a desafia no moralismo da tecnologia, restando apenas um perigoso e fascinante caminho.
Não é o das Bruxas, mas ele divide a magia com a turma de Agatha Harkness e Stephen Strange, já que as moderninhas feiticeiras Madeline (Cree Summer, de Abbott Elementary) e Zelma (Regan Aliyah), na fachada de sua loja de purificações e feitiços, desvendam a origem do Capuz e expandem a mitologia de Dormammu, Kaecilius e tudo que a Marvel vez ou outra pincela criativamente.

Quatro anos depois de ser teorizado à exaustão na primogênita WandaVision, Mephisto (Sacha Baron Cohen) dá as caras e surge tão imponente quanto elegante. Na barba desenhada em ângulos agudos, e acompanhada de sobrancelhas cheias de escuridão e lascívia, o Diabo das HQs seduz Parker, Riri e todos que ouvem sua oferta, assinada com a alma de quem recebe suas frutas.
Coração de Ferro não tem vergonha do cafona, revelando um vislumbre do capeta no reflexo da prataria da lanchonete, e também apostando em truques visuais e extraídos das páginas das revistas; repare só, em todos os seis episódios, a maneira que a série apresenta seu letreiro ou, ainda, quando Riri aterrissa numa placa que destrói todas as letras, menos a palavra ouch!.

É dessa veia cômica que a minissérie extrai sua vitalidade. O visual cafajeste do Capuz, adornado em roupas comuns sobrepostas ao item de rubra cor – embora sem a malemolência da capa do Doutor Estranho, potencializa o drama familiar do personagem, que ganha até música-tema, cantado por Ramos nos créditos (bateu saudade de Hamilton, eu sei).
A trilha sonora, recheada de pérolas do rap e do R&B, ambienta uma Chicago de negritude explícita e diálogos que caem suavemente na boca dos atores. A cena mais emocionante, quando N.A.T.A.L.I.E. roda uma miragem de memórias e leva Riri e a mãe às lágrimas, funciona pela breguice dos acontecimentos e pela crueza das emoções.

Quando precisa partir para a ação, Ironheart tampouco se apequena, apostando no visceral e maximalista desenho das armaduras que Riri veste e conserta ao longo de seu amadurecimento. A forma final, que mescla o passado na forma do carro do falecido padrasto, com o presente da ameaça mística, dá o toque de mestre. Lembra, também, a nostalgia e a porradaria de Gigantes de Aço, uma aventura familiar com requintes de conto da infância.
Crescida na pele da genialidade precoce, Williams evoluiu para uma adulta frustrada. De mãos atadas, e com vergonha de ligar para Shuri e explicar a situação cinzenta que se encontra, a heroína erra um bocado até que comece a acertar. Retrato da Geração Z, frenética e facilmente entediada, o surgimento de sua contraparte nos quadrinhos é respeitado e elevado; mais que a sucessora do Homem de Ferro, essa garota é a precursora da própria caminhada.
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