É verdade: o Global All Stars tinha mais chances de dar errado do que o contrário, mas Drag Race já surpreendeu no passado, invertendo expectativas e fazendo bonito em cenários adversos (é só pensar no Down Under 2 e no UK 5). O que nasceu como preocupação prematura logo se fortificou na edição do programa, com o favoritismo descarado para as falantes nativas da língua inglesa.
Alyssa Edwards, Kitty Scott-Claus e Kween Kong revezaram-se no pódio, composto por três jurados principais norte-americanos e uma parcela rotativa que pouco pesava nas deliberações da apresentadora. E, diferente do ocorrido em corridas como oUK vs the World 2, quando Ru caiu de amores por queens das Filipinas e da França, aqui o carinho não passou do segundo parágrafo.
Semana depois de semana, a audiência assistia mais uma drag internacional fazer as malas e, sem direito a mensagem no espelho ou despedida para as câmeras, deixar o elenco cada vez mais povoado pelas RuGirls originais. Nem Pythia, que veio de um Drag Race não-julgado por RuPaul mas fluente no inglês como língua materna, foi favorecida pela produção.
Os clássicos desafios, da Comédia à Costura, apareceram inalterados, sem vontade ou intenção de nivelar o jogo e não deixar em vantagem as piadistas natas do grupo. O Snatch Game do Amor viu duas performances marcantes (a italiana Nehellenia como Valentino e Pythia como Zeus), serem preteridas ao retrato clichê e batido da Princesa Diana de Kitty.
RuPaul nunca foi conhecida pela sensibilidade cultural, mas os estereótipos tornaram-se obrigatórios para as queens de fora do eixo anglo-saxão. Nelly ouviu o “Margherita Pizza” primeiro com asco e depois com certeza de que aquilo ganharia pontos com a host. Gala Varo teve seu aroma comparado ao cheiro de tacos, nos momentos em que nem produção nem equipe no estúdio demonstraram qualquer reação.
Para chegar longe, era preciso abraçar toda convenção e clichê nacional, fazendo RuPaul rir de qualquer zombaria – Joel Kim Booster, no podcast de Trixie e Katya, definiu perfeitamente: Ru queria o clichê datado dos anos 1940 de qualquer que fosse a nacionalidade da drag queen internacional. Sem representantes espanholas no elenco, o Global trouxe Os Javis para a bancada do Snatch Game, despindo-os da língua afiada e dos takes interessantes que eles costumam trazer sob a tutela de Supremme.
As interações internacionais da season seguiram a máxima, com o requinte e a personalidade das queens apagadas em favor da homogeneização que RuPaul firmou como base da temporada. Para a surpresa de ninguém, Alyssa, Kitty e Kween navegaram seguras até a Grande Final.
Tampouco chocante foi que, apesar do favoritismo da produção, a equipe de montagem cozinhou outra temporada. As favoritas deles, em especial Gala Varo, Nelly, Pythia e Vanity Vain, não tiveram o melhor dos históricos, mas foram protagonistas dos momentos de mais humor e emoção, marcas registradas da franquia.
O que poderia ser um show multi talentos da arte drag ao redor do mundo, com depoimentos únicos e pessoais, foi engolido pela curtíssima duração dos episódios, a ausência de proximidade com as queens e a forte presença de Kitty e Kween, pintadas como as megeras da vez, e de Alyssa, que nunca alcançou as expectativas geradas por sua escalação.
Edwards, que se consagrou como uma das personalidades mais fortes e marcantes do programa, nunca foi, propriamente, boa no quesito competitivo. Na temporada 5, conseguiu uma vitória, mas colecionou Lip Syncs. No All Stars, arrancou duas vitórias e duas eliminações. E como Jaremi bem pontuou tantos anos atrás, para contragosto dos fãs, ela recebe um passe livre porque esse é seu jeitinho.
Quando os fãs lembrarem da temporada inaugural do Global, não será pelo desempenho de Alyssa, que se escondeu atrás das mímicas e da personalidade. Sua vitória tornou-se mais palatável pelo retrato ácido de Kitty e Kween, as outras opções viáveis para a Coroa que, como a edição enfatizou, eram mais negativas do que calorosas. Nelly, a azarona no meio do trio de favoritas, não conseguiu repetir o feito de Jinkx Monsoon contra Rolaskatox – por mais que, aos olhos do fandom, a italiana saiu por cima.
E que desperdício foi a falsa promessa de diversidade no elenco. Da Bélgica, Athena Likis foi eliminada no Baile em que não deveria ter passado perto do Bottom. Miranda Lebrão, a queen brasileira, foi só simpatia e sorrisos, e viu RuPaul passar batida por seu Show de Talentos, um número no trapézio, para dar os louros à apresentações enfadonhas com Lip Syncs e espacates.
A filipina Eva Le Queen foi mais uma das anulações que o programa carimbou: nem a mug belíssima recebeu tempo de tela – e não vamos comentar sobre o Desafio do Makeover, quando a asiática foi par de Alyssa e sofreu com as habilidades artísticas da Miss Edwards. Soa de Muse, da França, encantou pela beleza e pela gentileza, cantou o coração para fora no Talent Show e saiu quase que silenciosa.
Gala Varo, brilhante quando julgamos performance e carisma, se acanhou e caiu na armadilha do Snatch Game. Na pele de uma atriz mexicana, RuPaul queria ver os estereótipos. E o look da categoria Marrom, julgado simples, parecia uma peça do Louvre perto do que Kitty desfilou, outro exemplo dos botes salva-vidas distribuídos às drags anglo-saxãs.
Pythia pegou o caminho da roça depois do Roast, quando nem o histórico invejável, nem os vestidos da passarela foram o bastante para superar Vanity no Lip Sync (aumentando, inclusive, seu péssimo track record quando o assunto são as músicas de Céline Dion). A sueca, de língua solta e visão muito original da arte drag, venceu 4 das 5 Dublagens que participou. O primeiro rendeu uma Vitória, e os outros salvaram-na do Sashay Away.
Cheia de camadas e emoções, Vanity foi a estrela da temporada, e reiterou como a montagem desordenada do Drag Race Sverige desfavoreceu as queens. Agora, queremos Fontana em algum Vs the World, já que o formato do Global precisa de muitas melhorias para voltar à circulação. Da Alemanha – e da Suíça – Tessa Testicle tornou-se filha e mãe de Alyssa, amada por RuPaul e um fenômeno entre os fãs. Ganhou o desafio da troca de malas na Costura e saiu depois dos Comerciais, apesar de matar a pau Kong na Dublagem.
Antes de coroar a campeã, o episódio 11 reuniu as oito eliminadas em um Torneio de Lip Syncs. À moda do formato bem-sucedido da décima sexta temporada, o Reencontro deu lugar a um campo de talentos e performances, e a chance de redenção de Athena, Gala e Soa. A francesa superou a mexicana e levou o título de Assassina Global de Lip Syncs, junto do cheque de cinquenta mil dólares. Na Final, Soa venceu também como Miss Simpatia e adicionou 10 mil às somas.
Focando apenas nas drags eliminadas, o momento de Batalhas foi prazeroso e deu saudades do que poderia ter sido a dinâmica da temporada. O encontro caótico e proveitoso de arte, singularidade, carisma e humor. A irmandade criada pelas queens, para além de decisões desengonçadas e favoritismo descarado, permanecerá como testamento da força do reality e das raízes que ajudou a disseminar e fortalecer pelo mundo.
Na Grande Final, brindada com o videoclipe da inédita Dance Like the World’s Watching, o top 4 se emocionou nas conversas individuais com Ru e Michelle – a nova host do Drag Race Down Under, com direito à presente em forma de broche comemorativo. Ao som de Bad Romance, em Lip Syncs solo, as queens lutaram pela Coroa que tinha o nome de Alyssa desde o primeiro dia.
Pena dos produtores que, ao planejar o All Stars Global com Edwards premeditada ao pódio, teve de lidar com uma temporada sem narrativa ou protagonismo da americana, que passou metade dos episódios entre as salvas e não engrenou amizade com ninguém além de Tessa. O porte de Alyssa, para ser sincero, está mais para a posição de jurada, convidada ou mentora. Colocá-la entre queens novatas na franquia apenas atestou o equívoco da escalação.
O retorno de alguém como ela, à exemplo de figuras mitológicas de Drag Race, como Katya, Detox, Raven, CoCo Montrese, Latrice Royale, Willam e por aí vai, deveria ser guardado para uma temporada de Legends ou alguma variável disso. Nehellenia dominou o quesito narrativo do Global, sempre à mercê de outras queens, ou arrasando nos desafios e escapando da Vitória, ou ainda exalando charme e simpatia pelo Ateliê. Mas se as corridas internacionais ensinaram algo, é que perder é o novo jeito de ganhar.
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