Ainda Estou Aqui coagula melancolia em filme de repressões

Filme escolhido para tentar vaga no Oscar 2025 é testamento da força de Fernanda Torres, monumental e indestrutível como Eunice Paiva

min de leitura

O retorno de Walter Salles à ficção 12 anos depois de Na Estrada é um filme pessoal para o diretor. Afinal, conheceu a família Paiva na juventude e acompanhou, mesmo que pela coxia, a tragédia que acometeu o lar. Ainda Estou Aqui começa nos acostumando à casa solar, com as cortinas que serviam de enfeite para janelas e portas enormes, banhadas pelo calor da infância e pela preocupação inexistente.

O entra e sai, comum, transformava filhos, primos e vizinhos numa coisa só, em trânsito nos anos de formação, com a praia carioca tornando-se picadeiro para as mais adversas situações. Uma tarde de volêi e banho de mar poderia muito bem acabar com a adoção do cãozinho Pimpão, que logo se adequa à coreografia familiar, dormindo no quarto, perseguindo o pequeno Marcelo (Guilherme Silveira) e ganhando o afeto da empregada Zezé (Pri Helena).

Ainda Estou Aqui venceu o prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Veneza, e acumula passagens por diversos outros, tornando-se um dos favoritos à indicação ao Oscar 2025; sem dúvidas, a melhor chance do Brasil na história da premiação americana (Foto: Globoplay)

Por meia hora, Salles filma o paraíso corriqueiro e ordinário, com a câmera passeando pelos cômodos, abarrotados de livros, pôsteres, cacarecos, charutos, papéis e carinho, o filme abruptamente se choca contra a parede. Mas os temores não chegam invisíveis: na primeira cena, o mergulho de Eunice (Fernanda Torres) é interrompido pelo barulho incomum das hélices de um helicóptero que sobrevoa os banhistas. Nas ruas, camburões formam linhas duras.

E nem Veroca (Valentina Herszage) se livra dos milicos, que param o carro dos amigos numa blitz e tratam os jovens com o desafeto usual dos agentes. É 1970, a Ditadura começou há seis anos e continua seu degradante processo de violência e morte. Rubens Paiva (Selton Mello) já foi deputado, mas atualmente só ocupa a posição de engenheiro exímio e pai urso. Passa os dias e as tardes ao lado da família, ocasionalmente batendo ponto no escritório, onde supervisiona a construção da Casa dos Sonhos, para onde vai levar todos no futuro próximo. 

Marcelo Rubens Paiva escreveu o livro em diversos momentos da vida: nos anos 90, quando o atestado de óbito foi emitido; nos anos 2000, com o diagnóstico da mãe; e nos anos 2010, quando Eunice foi interditada e as manifestações de Junho pediam a volta da Ditadura Militar (Foto: Globoplay)

A claridade que ajudava os Paiva a funcionarem em plena capacidade é assassinada sem cerimônias. A campainha toca, Zezé atende e é surpreendida por militares. Sua missão é clara: levar Rubens para depor. Onde?, pergunta Eunice. Eles não dizem. Posso ir junto com ele?, pergunta Eunice. Eles dizem que não. O marido se troca, abraça a filha, promete alguma pequenice e se despede da mulher. Está tudo bem, está tudo bem.

Essa foi a última vez que a família viu Rubens. Foi morto ou no dia 21 ou no dia 22 de janeiro de 1971. O corpo nunca foi encontrado, o atestado de óbito demorou vinte anos para ser expedido. No meio tempo, Eunice foi deslocada para o centro da imagem; mãe de 5, viúva de 1. Decidiu voltar à faculdade, formou-se em Direito e lutou pela demarcação de terras indígenas e pela preservação da Amazônia quando os assuntos não recebiam a devida atenção do poder público.

A direção de elenco superou expectativas, escolhendo atores mirins que transmitiram de forma harmônica o senso de família e atores adultos, e já consolidados no Cinema, em papéis de apoio, com destaque para Maeve Jinkings, Marjorie Estiano, Camila Márdila, Dan Stulbach e Humberto Carrão (Foto: Globoplay) 

No livro que deu origem ao filme, o autor Marcelo Rubens Paiva conta essa história de forma não-linear e muito sentimental. Olha para a mãe, à altura da publicação uma mulher idosa que convivia com o Alzheimer há uma década, com distância e objetividade. Escreve sobre os feitos de Eunice como de fato foram: de forma direta, sem pestanejar ou glorificar.

Walter Salles dirige tudo com a calma e a seriedade que apenas um realizador de experiência ímpar e tato singular poderia fazer. Em harmonia ao roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega, premiados no Festival de Veneza, Ainda Estou Aqui escolhe o sóbrio ao lânguido, abordando a memória na lógica do momento. 

No design de produção, o filme captura as minúcias dos anos 70 no Brasil, com Coca-Cola servindo de bronzeador na praia e uma trilha sonora que abrangia os maiores nomes da Música, de Gil aos Beatles (Foto: Globoplay)

Se o romance ia e vinha na vida de Eunice, com grandes fatias de acontecimentos recentes ao momento da escrita, o longa decanta o sumo da mensagem e centraliza Fernanda Torres nos diversos espaços temporais. A prisão passa de uma noite para uma árdua semana, com sensibilidade em casamento à brutalidade da ocasião.

O choro é tão escondido que só acontece quando o ambiente é tomado pela água; do mar do Leblon, as lágrimas não são as únicas que salgam o rosto; no banho, os hematomas e a magreza são parte de uma rotina de repressão, ministrada pela própria mulher a quem o pior foi acometido. Não pode despachar cheques, não pode tocar na poupança. A polícia nega a prisão, alega que o marido fugiu: Torres absorve cada emoção negativa e mantém a fachada.

Fernanda Torres preparou-se para o papel com uma dieta que lhe emagreceu muito; Selton Mello, por outro lado, engordou vinte quilos para o papel de Rubens Paiva (Foto: Globoplay)

Na sorveteria, deixa-se levar pelos arredores, quando os olhos transbordam no interior, assistindo às famílias quaisquer que dividem sorrisos e chocolate. Ainda Estou Aqui coloca nos ombros de sua protagonista cada ação de difícil mobilidade, como quando ela recalcula todas as prioridades e entende seu papel inédito no mundo. O casaco de pelos que ficou em Londres pouco importa; e ela também conhece o lugar onde o papai enterrou o dente, pois também sabe das coisas.

Se Marcelo Rubens Paiva (vivido pelo sempre ótimo Antonio Saboia) descreveu sua mãe como o oposto da “italiana” que distribuía beijos e apertos na bochecha, o filme reconstrói a figura na chave da proteção e da elegância. O campo de guerra está em movimento na cabeça de Eunice, que acaba tornando-se refém do mesmo objeto que a libertou.

25 anos depois de dirigir Montenegro ao Oscar de Melhor Atriz com Central do Brasil, Walter Salles tem a chance de representar o Brasil na festa da Academia, já que Ainda Estou Aqui aparece como um dos títulos mais badalados da temporada (Foto: Globoplay)

Na hora em que Fernanda Montenegro faz sua entrada, calculada à exímia perfeição pelo parceiro de longa data Salles, a memória que Paiva escreveu nas páginas e o diretor traduziu nas telas ganha significado novo. É a lembrança no estado mais volátil da matéria, em metamorfose de uma vida inteira de sorrisos amarelos, cumprimentos educados e burocracias angustiantes. A certeza de que, apesar do passado e também em vista dele, o presente continua: nas cerimônias anuais familiares, no carinho dividido sem concessões e na contínua troca entre os entes queridos. 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *