O dramaturgo August Wilson fez sua carreira nos palcos tratando de temas inerentes ao povo negro: a exclusão, o preconceito, o senso de família e proteção. O terceiro projeto cinematográfico que adapta suas peças ao Cinema é moldado pelo encontro do horror social com o terror psicológico: em Piano de Família, o mal é pequeno perto do sofrimento prévio.
Depois de Um Limite entre Nós e A Voz Suprema do Blues, chega a vez desta história com toques sobrenaturais pular da Broadway à Netflix, encabeçada pelo mesmo Samuel L. Jackson que disputou um Tony no papel coadjuvante do tio. Mas o que está no cerne da questão, e do que o diretor estreante Malcolm Washington faz uso sem cerimônias, é a dinâmica entre os irmãos que dividem o piano e planejam futuros muito distantes.
Ela é Berniece (Danielle Deadwyler), mulher de poucas palavras e menos paciência ainda, que se desagrada um bocado com a chegada de Boy Willie (John David Washington), que viajou de ponta a ponta dos Estados Unidos para juntar dinheiro e comprar a fazenda que eles, um dia, chamaram de lar.
The Piano Lesson mantém tudo em território familiar: Malcolm dirige o irmão e é produzido pelo pai, Denzel, um dos arautos do trabalho de Wilson. E, embora o roteiro em parceria com Virgil Williams patine entre o tom de terror e de retrato social daquela parcela mais pobre em uma cidade insatisfeita com os avanços libertários dos oprimidos, é no elenco que o drama se saúda.
John David Washington emula o melhor vozeirão para os palcos, e atua para a última fileira, com pausas carregadas de mágoa e gritos de protesto à Berniece, a quem Deadwyler confere austeridade e força. No cabo de guerra, um surpreendente e charmoso Ray Fisher dedica camadas de inocência e volúpia para Lymon, amigo de Boy Willie que pretende ficar no Sul.
Antes previsto como candidato óbvio a repetir a briga por prêmios do teatro para o Cinema, Jackson é modesto e passa quase despercebido, servindo de âncora emocional e apaziguador para a trama. Seu companheiro de idade é papel de Michael Potts, igualmente entregue ao acalorado cenário de Piano de Família. Como adaptação-praxe dos palcos às telas, os poucos cenários são explorados sem cansaço, com a sala de estar de casa servindo de base para emoções discrepantes.
Quando o filme resvala no aspecto sobrenatural, o que se configurava de modo decente na carga dramática, descamba para um lugar sem um, nem outro. Reivindicando as narrativas negras influenciadas pelo tropo de fantasmas e maldições milenares, análogas à escravidao e a violência, o filme se junta a títulos como His House e A Libertação, em circunstâncias onde os espíritos são personificações de problemas sociais e imateriais.
Pipocando em listas das premiações de fim de ano, o consenso de The Piano Lesson está na performance de Deadwyler, que figura nas apostas de Melhor Atriz Coadjuvante – e já acumula menções no Critics Choice, Gotham, no Spirit e em alguns círculos da crítica. Além disso, o elenco foi homenageado no Gotham, podendo ser aquela surpresa de última hora em votações como a do SAG. Mas, como o passado dita, ser a única representação do seu filme nas disputas do Oscar não é sinal de garantia alguma – Danielle Deadwyler que o diga.
Deixe um comentário