O retorno de Walter Salles à ficção 12 anos depois de Na Estrada é um filme pessoal para o diretor. Afinal, conheceu a família Paiva na juventude e acompanhou, mesmo que pela coxia, a tragédia que acometeu o lar. Ainda Estou Aqui começa nos acostumando à casa solar, com as cortinas que serviam de enfeite para janelas e portas enormes, banhadas pelo calor da infância e pela preocupação inexistente.
O entra e sai, comum, transformava filhos, primos e vizinhos numa coisa só, em trânsito nos anos de formação, com a praia carioca tornando-se picadeiro para as mais adversas situações. Uma tarde de volêi e banho de mar poderia muito bem acabar com a adoção do cãozinho Pimpão, que logo se adequa à coreografia familiar, dormindo no quarto, perseguindo o pequeno Marcelo (Guilherme Silveira) e ganhando o afeto da empregada Zezé (Pri Helena).
Por meia hora, Salles filma o paraíso corriqueiro e ordinário, com a câmera passeando pelos cômodos, abarrotados de livros, pôsteres, cacarecos, charutos, papéis e carinho, o filme abruptamente se choca contra a parede. Mas os temores não chegam invisíveis: na primeira cena, o mergulho de Eunice (Fernanda Torres) é interrompido pelo barulho incomum das hélices de um helicóptero que sobrevoa os banhistas. Nas ruas, camburões formam linhas duras.
E nem Veroca (Valentina Herszage) se livra dos milicos, que param o carro dos amigos numa blitz e tratam os jovens com o desafeto usual dos agentes. É 1970, a Ditadura começou há seis anos e continua seu degradante processo de violência e morte. Rubens Paiva (Selton Mello) já foi deputado, mas atualmente só ocupa a posição de engenheiro exímio e pai urso. Passa os dias e as tardes ao lado da família, ocasionalmente batendo ponto no escritório, onde supervisiona a construção da Casa dos Sonhos, para onde vai levar todos no futuro próximo.
A claridade que ajudava os Paiva a funcionarem em plena capacidade é assassinada sem cerimônias. A campainha toca, Zezé atende e é surpreendida por militares. Sua missão é clara: levar Rubens para depor. Onde?, pergunta Eunice. Eles não dizem. Posso ir junto com ele?, pergunta Eunice. Eles dizem que não. O marido se troca, abraça a filha, promete alguma pequenice e se despede da mulher. Está tudo bem, está tudo bem.
Essa foi a última vez que a família viu Rubens. Foi morto ou no dia 21 ou no dia 22 de janeiro de 1971. O corpo nunca foi encontrado, o atestado de óbito demorou vinte anos para ser expedido. No meio tempo, Eunice foi deslocada para o centro da imagem; mãe de 5, viúva de 1. Decidiu voltar à faculdade, formou-se em Direito e lutou pela demarcação de terras indígenas e pela preservação da Amazônia quando os assuntos não recebiam a devida atenção do poder público.
No livro que deu origem ao filme, o autor Marcelo Rubens Paiva conta essa história de forma não-linear e muito sentimental. Olha para a mãe, à altura da publicação uma mulher idosa que convivia com o Alzheimer há uma década, com distância e objetividade. Escreve sobre os feitos de Eunice como de fato foram: de forma direta, sem pestanejar ou glorificar.
Walter Salles dirige tudo com a calma e a seriedade que apenas um realizador de experiência ímpar e tato singular poderia fazer. Em harmonia ao roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega, premiados no Festival de Veneza, Ainda Estou Aqui escolhe o sóbrio ao lânguido, abordando a memória na lógica do momento.
Se o romance ia e vinha na vida de Eunice, com grandes fatias de acontecimentos recentes ao momento da escrita, o longa decanta o sumo da mensagem e centraliza Fernanda Torres nos diversos espaços temporais. A prisão passa de uma noite para uma árdua semana, com sensibilidade em casamento à brutalidade da ocasião.
O choro é tão escondido que só acontece quando o ambiente é tomado pela água; do mar do Leblon, as lágrimas não são as únicas que salgam o rosto; no banho, os hematomas e a magreza são parte de uma rotina de repressão, ministrada pela própria mulher a quem o pior foi acometido. Não pode despachar cheques, não pode tocar na poupança. A polícia nega a prisão, alega que o marido fugiu: Torres absorve cada emoção negativa e mantém a fachada.
Na sorveteria, deixa-se levar pelos arredores, quando os olhos transbordam no interior, assistindo às famílias quaisquer que dividem sorrisos e chocolate. Ainda Estou Aqui coloca nos ombros de sua protagonista cada ação de difícil mobilidade, como quando ela recalcula todas as prioridades e entende seu papel inédito no mundo. O casaco de pelos que ficou em Londres pouco importa; e ela também conhece o lugar onde o papai enterrou o dente, pois também sabe das coisas.
Se Marcelo Rubens Paiva (vivido pelo sempre ótimo Antonio Saboia) descreveu sua mãe como o oposto da “italiana” que distribuía beijos e apertos na bochecha, o filme reconstrói a figura na chave da proteção e da elegância. O campo de guerra está em movimento na cabeça de Eunice, que acaba tornando-se refém do mesmo objeto que a libertou.
Na hora em que Fernanda Montenegro faz sua entrada, calculada à exímia perfeição pelo parceiro de longa data Salles, a memória que Paiva escreveu nas páginas e o diretor traduziu nas telas ganha significado novo. É a lembrança no estado mais volátil da matéria, em metamorfose de uma vida inteira de sorrisos amarelos, cumprimentos educados e burocracias angustiantes. A certeza de que, apesar do passado e também em vista dele, o presente continua: nas cerimônias anuais familiares, no carinho dividido sem concessões e na contínua troca entre os entes queridos.
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