Na seção nacional da 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o documentário Os Maus Patriotas percorre um longo caminho. Na Inglaterra, o diretor Victor Fraga conversa com o cineasta Ken Loach e o político Jeremy Corbyn, taxados de traidores pelo caráter social do discurso que carregam e defendem.
Baiano que mora no Reino Unido desde 1997, Fraga é incisivo em sua filmografia, que abrange um estudo sobre o avanço da direita no Brasil, com A Fantástica Fábrica de Golpes. A entrevista de hoje se aprofunda nas questões de produção do novo longa, além de estender as temáticas para o que aconteceu depois das câmeras desligarem. Victor Fraga, ainda, promete uma sequência e conclusão à trilogia da Mídia Suja. Leia a seguir.
Qual era sua relação com os entrevistados antes da realização de Os Maus Patriotas? Como foi a aproximação, especialmente com Ken Loach, com quem você divide a profissão?
Victor Fraga: Eu conhecia o Ken Loach há alguns anos, pois eu sou jornalista, sou crítico de cinema, tenho um portal que se chama Dirty Movies um dos maiores portais independentes do Reino Unido, que existe desde 2016. Eu já tinha entrevistado o Ken Loach três vezes. Tinha uma relação muito boa já com a Sixteen Films, a empresa do Ken; a produtora do Ken Loach, a Rebecca O’Brien, inclusive doou equipamento para a edição do filme. E a minha relação com Jeremy Corbyn já vinha de alguns anos, pois eu sou ativista. Eu realizei um filme chamado A Fantástica Fábrica de Golpes em 2021, sobre o papel da grande mídia na desconstrução da democracia brasileira, sobre como a grande mídia brasileira tem instrumentado golpes de Estado ao longo das últimas décadas e ajudado a instrumentar esses golpes de Estado.
Esse meu filme passou no Brasil e passou no Reino Unido. Jeremy Corbyn tem uma relação muito íntima com a América Latina, ele foi casado com uma chilena, teve três filhos com uma chilena, e a mulher dele atual, a Laura, é mexicana, e ele é um socialista nato que visita América Latina desde a década de 1960. Ele me confidenciou que esteve no Brasil, em São Paulo, em 1968, protestando contra o AI-5. Quando eu exibi meu filme, A Fantástica Fábrica de Golpes, ele participou de muitos debates, se identificou muito, e dessa forma resolvi convidá-los, pois há muitos paralelos entre o que acontece no Brasil e acontece no Reino Unido.
Decidi que seriam duas vozes, muito incríveis e com uma experiência muito relevante, afinal de contas, o Ken Loach é o pai do realismo social, a grande voz da classe operária no cinema do Reino Unido e do mundo. E o Jeremy Corbyn é o grande líder da verdadeira esquerda. Quase se elegeu em 2017, primeiro como ministro. Ambos foram expulsos do Partido Trabalhista, com acusações infundadas de antissemitismo. Então eu tenho uma relação íntima com os dois e por isso ambos estavam muito à vontade comigo, e sabiam já o viés do meu trabalho. Nós compartilhamos uma visão de mundo.
De que maneira o discurso do documentário conversa com os acontecimentos que ocorreram desde as gravações, como a invasão russa na Ucrânia, o massacre na Palestina e, em grau menor, as questões políticas do Brasil?
VF: O documentário foi gravado em 2023, pouco antes do 7 de outubro. A questão Palestina e a questão do genocídio não foram parte desse diálogo, pois o genocídio não tinha começado ainda. No entanto, como nós sabemos, a questão se estende há 76 anos de opressão, de ocupação ilegal, e já foi abordada no filme. Eu tomei a decisão de enfatizar ainda mais, de fazer reflexões sobre o tema, pois durante a pós-produção, houve o 7 de outubro e esse tema ficou muito mais em voga.
A invasão russa da Ucrânia era, naquele momento, e continua sendo um tema vital. As questões políticas do Brasil continuam sendo um tema vital. É claro que a gravidade da democracia e da soberania do Brasil não estão em risco como as da Ucrânia e sobretudo da Palestina. No entanto, há paralelos entre esses três temas, pois são países que são vítimas de imperialismos distintos, o imperialismo americano, o russo e o imperialismo sionista.
Como você se enxerga nesse papel de mediador da arte, sendo um brasileiro que vive na Europa? Como faz para se manter à par dos acontecimentos nacionais?
VF: Eu sou brasileiro e sou britânico, moro no Reino Unido há 27 anos e me sinto muito brasileiro quando eu estou no Reino Unido, assim como me sinto muito britânico quando estou no Brasil. Acho que o olhar de fora, o olhar forasteiro, enriquece muito, por isso eu busco traçar paralelos. Conheço muito a situação no Brasil, por isso me sinto capacitado e qualificado em exercer paralelos. Creio que um mediador britânico de nascença que não tenha a experiência global, a experiência da imigração, teria uma visão bastante diferente. Mas o filme tem um viés democrata e de esquerda, que eu compartilho com o Ken e com o Jeremy.
Não é necessariamente um viés marxista, eu não me considero marxista. Sou muito crítico de qualquer tipo de autoritarismo, pessoalmente ao autoritarismo russo. É uma visão que parte da esquerda brasileira não compartilha. O próprio Ken e o Jeremy esclarecem que também tem críticas em relação à Rússia, que jamais mais se alinhariam a Stalin e também a Putin, que nem é de esquerda. E eu me mantenho constantemente informado sobre acontecimentos em ambos países, a minha relação com o Brasil é muito íntima, eu venho sempre ao Brasil e em razão da realização de A Fantástica Fábrica de Golpes, eu continuo envolvido na política brasileira.
Acho que quem saiu do Brasil não abandonou o Brasil. “Brasil ame-o ou deixe-o” é um discurso da ditadura, então eu continuo muito ligado ao Brasil e naturalmente eu estou muito ligado ao Reino Unido, morando lá há 27 anos e tendo feito esse filme. Tendo sido uma peça importante durante o golpe no Movimento de Solidariedade Internacional. Jeremy Corbyn e outras lideranças como George Gallo, Ken Livingstone e tantos prestaram solidariedade ao Brasil. Então, a solidariedade internacional é chave na luta contra o autoritarismo.
O constante desenrolar de novos conflitos e mais violência tomando os noticiários te motiva a continuar gravando e perseguindo a verdade? Já tem tema para projetos futuros?
VF: O desenvolver de novos conflitos e mais violência me motivam, sim, me motivam muito. Eu assisto quase exclusivamente ao Al Jazeera. Às vezes assisto um pouco a Sky News e, às vezes, um canal de extrema-direita chamado DB News, assisto a nível de comparação. A cobertura da mídia ocidental é extremamente enviesada. A Europa presta solidariedade à Palestina, no entanto, criticar Israel não é visto com bons olhos. Tanto que meu filme foi vítima de censura no Reino Unido, e estou numa pequena batalha legal nesse momento contra uma grande instituição, mas não posso revelar os detalhes. Enfim, o que eu vejo na Al Jazeera, a grau de depravação do que acontece na Palestina, me motiva a continuar esse debate sobre o papel da manipulação midiática.
Por que é que só a Al Jazeera é objetiva? Por que é que Israel baniu a Al Jazeera de seu território? Se assistir ao noticiário é revoltante, as notícias são repugnantes, desde os soldados israelenses e a IDF (Israel Defense Forces) soltando o cachorro em cima de um homem deficiente. E deixando os cachorros estraçalha-lo diante da família enquanto eles apontavam para que não pudessem resgatá-lo. Um outro exemplo: um pai palestino que foi buscar a certidão de nascimento de seus gêmeos, que haviam acabado de nascer e, quando voltou em casa, os gêmeos tinham sido mortos por uma bomba.
Isso tudo causa muita indignação. Esse filme é o segundo filme de uma trilogia da mídia suja. O primeiro foi A Fantástica Fábrica de Golpes. Os Maus Patriotas é o segundo, e o terceiro é um filme que está em produção e que terá como protagonista o Noam Chomsky. É uma profunda entrevista. A penúltima entrevista que o Noam Chomsky cedeu, antes dele ter um sério episódio e ficar permanentemente impossibilitado de falar e escrever.
Como foi a passagem pela Mostra de São Paulo? Parabéns pelo grande filme, e mais ainda pela oportunidade de bater esse papo rápido.
VF: A passagem pela Mostra de São Paulo foi muito especial. Eu sou baiano e meu primeiro festival, meu primeiro trabalho foi na Mostra. Foi no ano anterior ao que me mudei para a Inglaterra, em 97. A Mostra de SP é um festival reconhecido internacionalmente, é um festival internacional, uma vitrine para diretores estabelecidos e novos diretores. Então foi um grande privilégio. Fui muito bem recebido pelo festival, e tive o privilégio de vir com meu grande amigo, Mohsen Makhmalbaf. Eu restabeleci essa ponte que ele tinha com o festival (ele já tinha vindo ao festival anteriormente duas vezes), e eu sugeri a ele que enviasse os seus novos filmes.
Pois o festival e a Renata [de Almeida, organizadora da Mostra] ,que é grande fã, não somente selecionou esses dois filmes dele, como também selecionou um filme da Hana Makhmalbaf, filha do Mohsen Makhmalbaf, e ainda convidou ele para ser júri do festival. Nesse momento eles foram empenhados também a fazer com que o Mohsen venha a realizar um filme no Brasil. Isso tudo tem acontecido graças a Mostra de São Paulo, que permitiu que nós dois viéssemos para cá. Então muito obrigado por essa oportunidade. Um grande abraço.
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