Na ocasião da cerimônia do Oscar 2004, realizada em 29 de Fevereiro, dois atores dirigidos por Clint Eastwood subiram ao palco para agradecer pelos prêmios. O americano voltaria ao teatro no ano seguinte, mas o filme em questão, Menina de Ouro, só começaria a gravação alguns meses depois. Quando de fato gritou luz, câmera, ação, Clint trabalhou com o calendário correndo em sua direção.
Foram menos de 40 dias de produção, e Million Dollar Baby chegou quase que no limite das submissões para a Academia. Com lançamento marcado para dezembro, só começou a ser filmado em julho. No BAFTA, a ausência de exibições prévias tirou o filme da disputa, amargando zero indicações. Os Estados Unidos, pátria do grande autor e ator, abraçou o drama esportivo com zelo e precisão, indicando-o para 7 prêmios. Destes, venceu quatro.
Clint Eastwood ganhou como o Melhor Diretor, além de dividir a honraria de Melhor Filme com os produtores Albert S. Ruddy e Tom Rosenberg. Perdeu Ator para Jamie Foxx, e viu o filme sair também sem os prêmios de Montagem e Roteiro Adaptado. Viu, também, suas estrelas brilhando com o ouro em mãos: Hillary Swank, como Melhor Atriz, e Morgan Freeman, na disputa de Ator Coadjuvante.
Segundo Oscar de Swank, que cinco anos antes venceu por Meninos Não Choram, e desta vez fez história como a primeira mulher indicada por viver uma lutadora. Sua personagem Maggie é uma caipira que aceitou o destino escrito pela vida, e só corre atrás dos sonhos no alto dos trinta e poucos. Quer ser boxeadora, e busca no lendário treinador Jackie o guru de sua caminhada.
Na academia de que é dono e mentor, Jackie distribui mau humor para as várias figuras carimbadas e excêntricas do ambiente. O zelador Scrap (Freeman) é parte-faz-tudo, parte-figura paterna. Os aspirantes a estrelas Big Willie (Mike Colter), Shawrelle (Anthony Mackie) e Omar (Michael Peña) se dividem entre o trabalho árduo e a curtição típica da vagabundagem.
Nem mesmo o cômico Danger, em desempenho fora de série de Jay Baruchel, sai ileso da jogada toda. Escrito por Paul Haggis, que se baseia em contos e excertos do autor F.X. Toole, Menina de Ouro é despretensioso na hora de apresentar e modificar sua história. Jackie não quer treinar Maggie por essa ser mulher. Ela não desiste, ganha apoio de Scrap e enfim convence o velhote a guiá-la.
Entre os nocautes, Clint Eastwood trabalha a escuridão da vida dos personagens, pessoas muito gastas pelos infortúnios da vida mas que, por razão qualquer, decidem continuar a jornada. Se Maggie não se envergonha da origem humilde e do emprego como garçonete, o olho cego de Scrap é lembrete de um descuido de Jackie. Homem atormentado e zombeteiro, que insiste em comparecer à missa só para malhar a paciência do padre.
Afastado da filha, por escolha dela, o protagonista enxerga Maggie não como um receptáculo que substitui o próprio sangue, mas como chance de, ao mínimo, arrumar o futuro sem cometer erros antigos. A chave vira quando o filme se joga no melodrama de tragédia e, sem cerimônias, troca o ringue sangrento pelo leito claro do hospital.
A luz, que engole os homens e mulheres, é captada pela direção de fotografia de Tom Stern, e manipulada pela montagem de Joel Cox. Aqui, Clint (que compõe a trilha) aguça os sentidos e busca nos contrastes do luminoso e do breu o local onde seus personagens, gastos e cansados que só, possam descansar os olhos e deixar a vida no ponto morto. Fantástico trabalho do elenco e direção afiada nos nós de tragédia e cuidado, o que se forma ao fim de Menina de Ouro é um dos campeões mais formidáveis e robustos da Academia.
Passou como rolo compressor por aqueles que subestimaram o tato febril de Clint, que retornou ao palco e encerrou a noite alguns anos depois de fazer o mesmo com Os Imperdoáveis. Trocando socos, cuspindo sangue, chorando quieto: o velho ideal dos americanos dá brecha para a melancolia que aterrissa acoplada ao inevitável senso de si. Resta buscar as conexões que fazem da jornada suportável e quem sabe, agradável.
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