Instruída a transformar e expandir o artigo que escreveu para a revista The New Yorker, a jornalista Susan Orlean penou. Afinal, o breve estudo que traçou entre um americano simples e sua obsessão por orquídeas, não tinha estofo o bastante para render nas dezenas de páginas do livro. Quando o roteirista Charlie Kaufman recebeu a tarefa de transformar The Orchid Thief, romance em questão, em filme, enfrentou problemas quase iguais.
No alto da popularidade consolidada no texto de Quero Ser John Malkovich, Kaufman teve epifanias e crises de criatividade no projeto seguinte: não queria se dobrar aos clichês temerários da indústria, tampouco forçar seus personagens em moldes pré-concebidos. Disso, tirou a espinha dorsal de Adaptação, filme que acompanha o processo de transmutar isso em aquilo. Livro em filme; verdade em cena.
Para tal, Charlie se escreve no próprio roteiro, criando uma extensão fictícia do mundo real. No papel de protagonista, está Nicolas Cage, que aqui desempenha jornada dupla. É tanto Charlie, afetado, irritadiço, suarento e frágil, quanto Donald, seu gêmeo confiante, criativo e desinibido. Cage, à época requisitado em Hollywood depois do Oscar que venceu nos anos 90, se joga no papel-sátira do autor.
Usa traje que ajuda na ilusão de ganho de peso, cultiva um couro cabeludo ralo e brilhante, e tem nos olhos uma fúria quase tão potente quanto a indisposição e a tristeza. No set de Malkovich, observa os atores declamando o texto que criou. Assiste, também, o irmão sendo um imã de carisma e mulheres, chegando a namorar uma das maquiadoras do filme, papel da sempre fantástica Maggie Gyllenhaal.
Charlie, ao contrário, só desfruta da companhia feminina em seus diversos devaneios, febris e sexuais. A produtora Valerie Thomas (Tilda Swinton), a garçonete Alice (Judy Greer) e até a jornalista Susan Orlean (Meryl Streep); é provável que o protagonista sonhou com todas elas. A que mais impacta sua rotina é a última, já que Kaufman tem em mãos o manuscrito da norte-americana, e tenta a todo custo extrair das palavras um filme que seja, enfim, sobre as flores.
Não sobre tiroteios, violência ou morte. Menos ainda sobre o homem no centro de tudo, John Laroche (Chris Cooper), um caipira desdentado que desperta a curiosidade de Orlean. Assim, Adaptation. acompanha as diversas ideias de Kaufman, unidas pela montagem astuta de Eric Zumbrunnen, que afia os núcleos em passagens de tempo distintas. Há, para o senso de humor do diretor Spike Jonze, uma tentativa bem sucedida de quebrar a estrutura fílmica e ousar em cada virada.
No encontro com o celebrado autor Robert McKee (Brian Cox), Charlie é encarado por seus demônios mais persuasivos. Recalcula a própria maneira de levar a vida, decide ajudar o irmão Donald na escrita do roteiro dele, um pastiche de mistério e assassinato que destoa de tudo que Charlie preza e busca no trabalho atual. Da origem do universo aos encontros jornalísticos de Susan e Laroche, o filme brinca com a ideia e o pressuposto do ego do autor.
Cage se afoga na autodepreciação do roteirista, enquanto Streep passeia entre o ar de sacana e a pose de cínica que reveza na relação com Laroche. Chris Cooper, vencedor do Oscar 2003 de Melhor Ator Coadjuvante, apaga qualquer traço de vaidade e de julgamento, para que toda cena com John seja ministrada na base da euforia, da incerteza e, mais a fundo, do senso de tristeza e luto que acarreta sua própria realidade.
O terceiro ato, selado na passagem espiritual do filme que Charlie falhou em fazer para o filme que Donald obteve sucesso, muda a chave e peca em todos os quesitos que McKee denotou. Sorte a nossa, considerando o efeito de cada susto e tiro. Com Streep afoita, Cooper maltrapilho e sanguinário e Cage assustado para burro, Adaptação regozija o tropo do autor dentro da obra, o filme dentro do filme, de forma análoga ao trabalho de mostrar como, no âmago, toda adaptação é exercício de fatiar e temperar o ego.
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