Há algo curioso, quase tragicômico, em assistir a Tokyo Melody: Um Filme sobre Ryuichi Sakamoto em 2024, durante a 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Quando o documentário de Elizabeth Lennard estreou em 1985, o mundo parecia otimista sobre o potencial das novas tecnologias, da música eletrônica e da fusão cultural entre Oriente e Ocidente – uma crença ingênua em um futuro moldado pela inovação. Esse mesmo mundo, que então parecia à beira de uma revolução criativa, agora se reduz a nossos feeds saturados e minuciosamente manipulados por algoritmos insaciáveis, que transformam qualquer vislumbre de originalidade em mais um produto a ser consumido.
A possibilidade de ver o filme restaurado em 4K, a partir dos negativos originais em 16mm e das fitas de áudio magnéticas estéreo – um trabalho conjunto entre o Instituto Audiovisual da França e a Kab America Inc. do Japão –, gera também uma desorientação temporal: estamos observando um passado que parecia o futuro, a partir de um futuro que parece o presente. Isso pouco mais de um ano da figura central do filme, o prodigioso membro da Yellow Magic Orchestra (YMO), falecer aos 71 anos.
De maneira perspicaz, a diretora escolhe não entregar uma narrativa biográfica tradicional; não há uma estrutura linear, muito menos a estrutura batida de acompanhamento da infância do artista e sua respectiva formação musical. A música faz parte da história, como personagem, e as mudanças sociais perpassam as cenas – invariavelmente, a cidade é retratada como uma metrópole futurista à la Blade Runner, de Ridley Scott, que à época havia sido lançado há apenas três anos.
Tóquio é também uma personagem, como seu título prenuncia. Durante muito tempo, a Alemanha de Kraftwerk e de Corra, Lola, Corra (1998) foi vista como o berço do techno. Mas a vibrante e frenética capital do Japão sempre teve um quê futurista por excelência, no esforço para equilibrar templos ancestrais com neons fluorescentes. Lennard, então, captura o sublime ao unir Sakamoto e seu ambiente, a simbiose entre música e metrópole – uma metáfora física para os sons do artista japonês.
Ryuichi Sakamoto, de uma maneira talvez inesperada para um compositor com raízes na música clássica e eletrônica – vivendo no limiar entre ambas –, exerceu forte influência no hip hop. Muitas composições da YMO, com bases em texturas eletrônicas e ritmos experimentais, se tornaram uma mina de ouro para produtores e DJs que buscavam sons inovadores para criar beats e samples. Firecracker, por exemplo, foi sampleada no hit Me Myself and I, do De La Soul, enquanto Riot in Lagos, da carreira solo de Sakamoto, contribuiu na construção do som electro-funk dos anos 1980.
Essa reciclagem e transformação de composições mostram como o trabalho de Sakamoto transcende, desde suas origens, as fronteiras do gênero, adaptando-se e permanecendo relevante durante muito tempo, como uma espécie de som que nunca deixa de ressoar, seja em uma pista de dança em Tóquio ou em um cypher em Nova York.
A recusa de Elizabeth Lennard em minimizar Sakamoto é um dos pequenos prazeres em assistir Tokyo Melody. Close-ups moderados, pausas dramáticas, os momentos em que ele apenas observa o mundo à sua volta – tudo isso sugere que há uma complexidade maior, e que a música é apenas uma das maneiras encontradas pelo artista para traduzir algo que nunca poderá ser completamente expresso em palavras. É o que torna o retrato de Sakamoto algo inegavelmente melancólico, cuja tristeza parece emergir da inevitabilidade de que todas essas esperanças eletrônicas serão – como foram – absorvidas pela indústria cultural.
Ainda assim, embora a diretora também seja artista visual e tenha um aparente apreço pela narrativa estética de Tokyo Melody, é impossível dissociar sua tentativa de encapsular a cidade em uma espécie de síntese cultural. É uma ficção projetada pelo olhar ocidental de turista norte-americana, que não vê as complexidades enfrentadas nas minúcias de qualquer país. Por essa razão, em muitos momentos, Ryuichi Sakamoto parece mais uma figura simbólica do que um ser humano real, devido às camadas de abstração visual que o transformam em um avatar do futuro da música – uma falha que atormenta quase todos os documentários musicais.
Em seu trabalho como compositor, Ryuichi Sakamoto nunca se limitou ao papel tradicional. A bem da verdade, seu impacto no cinema é uma das razões para a celebração de sua obra na 48ª Mostra Internacional. Sakamoto é aquele tipo raro de artista que compreende que uma trilha sonora não é apenas um complemento ao filme, mas uma extensão emocional da narrativa, capaz de expandir a dimensão intelectual e sensorial de cada cena.
Essa sensibilidade está presente em diversos momentos da sua carreira, como em Merry Christmas, Mr. Lawrence (1983) – ou Furyo, Em Nome da Honra –, dirigido por Nagisa Ōshima, onde Sakamoto não apenas compôs uma das trilhas mais marcantes do cinema, mas também contracenou com David Bowie. Seu trabalho continuou a se destacar em filmes contemporâneos como O Regresso (2015), de Alejandro González Iñárritu, e After Yang (2022), de Kogonada, culminando com sua última contribuição em Monster (2023), de Hirokazu Kore-eda.
No entanto, sua obra-prima incontestável é a trilha de O Último Imperador (1987), de Bernardo Bertolucci, em colaboração com David Byrne. Esse trabalho não só lhe rendeu um Oscar de Melhor Trilha Sonora e um Grammy, mas também ajudou a redefinir o papel da música no cinema. Anos depois, nas encomendas de Brian de Palma para Olhos de Serpente (1998) e Femme Fatale (2002), Sakamoto apenas consolidou seu talento como interlocutor de um idioma próprio.
É essa sensibilidade de Sakamoto – uma habilidade precisa de traduzir a narrativa visual em uma linguagem sonora que toca algo além do consciente – que define sua verdadeira genialidade. Sakamoto não compõe apenas para o filme em si, mas para nossa memória do filme, para aquele espaço emocional que continua a vibrar, persistente, muito tempo depois que os créditos finais já desapareceram da tela. Em essência, sua música transcende o tempo e se aloja em algum lugar do imaginário.
Quase quatro décadas depois, Tokyo Melody: Um Filme sobre Ryuichi Sakamoto funciona como uma cápsula do tempo, capturando um momento em que a crença no futuro transformado pela música eletrônica ainda estava em plena efervescência, à beira de impulsionar a cultura clubber a níveis globais, antes que ela mesma fosse absorvida e fragmentada pelo mercado. Talvez ainda estejamos esperando esse futuro – um futuro que se mostrou apenas uma outra camada de presente, e que, no fundo, Sakamoto sabia que era uma ilusão.
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