Cillian Murphy entra em cena como Bill Furlong em Pequenas Coisas Como Estas, longa que integra a seção Perspectiva Internacional da 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Com um olhar que parece absorver todo o sofrimento do mundo, escondendo o terror vivido e suprimido, o personagem vive um dilema moral.
Furlong é um homem moldado por uma origem humilde e uma infância marcada por dificuldades, vivendo agora em uma Irlanda industrial dos anos 1980, onde a paisagem é tão áspera e cinza quanto as suas memórias. Ele é casado e pai de cinco meninas, e alcança respeito e autonomia financeira após anos de trabalho árduo como carvoeiro. Porém, é justamente essa conquista – essa aparente estabilidade – que se torna o epicentro de sua crise de identidade.
O protagonista foge dos clichês: o que poderia se tornar uma narrativa de solidão masculina, envolta nas certezas de uma masculinidade taciturna, se revela, na verdade, uma trama tecida por pequenos gestos e sutilezas, um espaço de “pequenas coisas”. É essa abordagem que faz de Murphy – vencedor do Oscar de Melhor Ator por Oppenheimer – a escolha perfeita para o papel. Furlong não é apenas um homem de poucas palavras; ele é alguém cujas palavras estão em constante batalha contra o silêncio imposto pelas normas de uma sociedade conservadora.
A cidade de New Ross, onde vive, é um monumento ao não-dito, um lugar onde o silêncio cúmplice encapsula os horrores das Lavanderias de Madalena. Esse “trauma coletivo” é amplamente ignorado por uma comunidade que prefere manter suas consciências limpas do que confrontar a crueldade à sua volta. Em 1985, a Igreja Católica, encarnada na figura da Irmã Mary (Emily Watson), governa com um poder que é tão psicológico quanto religioso, sufocando qualquer tentativa de resistência.
A direção do belga Tim Mielants mantém uma contenção tão cuidadosamente orquestrada que Pequenas Coisas Como Estas quase parece respirar por si mesmo, ofegante e pausado, exatamente como Furlong nas noites insones em que se levanta para fazer chá e observar as ruas da cidadezinha, repletas de violência velada – uma metáfora da sua condição.
O momento de revelação de Bill Furlong ocorre quando ele entra na lavanderia e enxerga, com uma clareza dolorosa, aquelas garotas que poderiam ter sido sua própria mãe em uma realidade diferente. Sua mãe, que só escapou desse destino graças à benevolência da Senhora Wilson (Michelle Fairley), uma aristocrata em decadência. Se dependesse da igreja, ela teria sido brutalmente separada do filho.
Como nos romances de Charles Dickens – frequentemente citados na trama –, Furlong se debate entre o apelo à compaixão humana e a passividade confortável oferecida pela segurança financeira. Quando ele menciona que aquelas garotas poderiam ser suas filhas, sua esposa, a materialista Eileen (Eileen Walsh), prontamente o corrige: “Mas não são”.
Depois, vem sua provação: ao abrir a porta do depósito da igreja, onde descarrega as sacas de carvão compradas pelas irmãs todas as manhãs, se depara com Sarah (Zara Devlin). Suja e fraca, ela revela estar grávida – as irmãs da igreja, ela diz, vão retirar o bebê e levá-lo para um lugar melhor. Furlong entende o sinal: Sarah é o nome da sua mãe. Como uma reencarnação de Cristo, ele precisa decidir seguir em frente com sua escolha moral, que o afastará da comunidade e ameaçará o futuro das filhas – pois a Igreja Católica controla as escolas e universidades – ou se calar, e despedaçar sua própria vida. Ele decide agir e ajudar Sarah: permanecer em silêncio seria a própria traição.
Mas Small Things Like These possui nuances de terror, e muito disso decorre do trabalho do roteirista Enda Walsh – que trabalhou em Fome (2008), de Steve McQueen –, que ao adaptar a prosa afiada do romance homônimo de Claire Keegan, finalista do Booker International Prize, nos leva a uma Irlanda onde as convenções sociais e os silêncios cúmplices são os verdadeiros vilões – apesar da Irmã Mary ser uma forte candidata. Ainda assim, é mais importante para a história entender que o cotidiano é repleto de violências veladas, que são permitidas com conivência, do que personificar a maldade.
A façanha do diretor é nos conduzir para um final que se desenrola como um daqueles sonhos angustiantes onde você corre, mas não consegue sair do lugar. Algo está prestes a acontecer, algo que vai mudar tudo – mas então a tela escurece, e você percebe que talvez o ponto seja exatamente esse: não saber se algo realmente mudou. O sacrifício é o tudo, mesmo que não seja suficiente.
Deixe um comentário