Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça

O que o Cinema latino-americano tem a dizer sobre a forma como lidamos com o passado

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A memória é um processo complexo. Uma lembrança individual de um acontecimento tem o potencial de dialogar com a construção coletiva do que entendemos hoje por sociedade e, assim, a história vai se costurando e remodelando. É exatamente por isso que, além de complexo, a memória também pode ser um processo doloroso. E, de dores, a história do Brasil está repleta.

Em 2024, o golpe militar completa 60 anos. O movimento criminoso iniciado em 31 de março de 1964 pelo general Olímpio Mourão Filho só se concretizou em 2 de abril, quando o Congresso declarou vaga a presidência da República. O resultado disso tudo foi uma ditadura que durou 21 anos – de 1964 a 1985 –, e, oficialmente, matou ou desapareceu com 434 pessoas.

Por isso, em algum momento, seria preciso que as feridas expostas fossem fechadas e o coração assombrado, exorcizado. É aí que a arte entra – nada melhor do que cantar, dançar, escrever ou filmar seus traumas para fora. Aliadas ao passado, essas narrativas que surgem a partir de processos históricos complexos dizem muito sobre a firmeza da relação que o país biografado tem com a própria história.

No Cinema latino-americano é possível perceber esse vínculo de forma clara. Enquanto pedaço disforme de continente, a América Latina compartilha entre si de diferenças e de similaridades escandalosas, principalmente após um violento processo de colonização que dizimou povos originários, sugou recursos naturais e, futuramente, acarretaria em democracias instáveis e conflitos civis.

As atrizes Tônia Carreiro, Eva Wilma, Odete Lara, Norma Benghel e Cacilda Becker em protesto contra a censura no ano de 1968 (Foto: Arquivo Nacional)

Foi a partir dos anos 60, inclusive, que as ditaduras militares pipocaram por essas bandas. Enquanto o mundo vivia uma guerra fria que o dividia em dois blocos, o anticomunismo impulsionado pelo imperialismo estadunidense aterrissou com força total na América Latina. Governos de esquerda democraticamente eleitos e interessados em reformas sociais começaram a se tornar alvos do Tio Sam, principalmente após o sucesso da Revolução Cubana, em 1959. 

Uma onda de militares golpistas com o apoio bélico e ideológico dos Estados Unidos passou a depor presidentes como Jacobo Árbenz Guzmán, Salvador Allende, Isabelita Perón, e, no nosso caso, João Goulart. Com ditaduras que duraram 15, 20, 30 anos, os opositores foram perseguidos e assassinados, a censura se estabeleceu nos jornais, os direitos humanos foram esmagados e a tortura se tornou ferramente institucional. 

A Operação Condor surge nesse contexto como um pacto sangrento entre seis ditaduras – Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Uruguai e Paraguai –, buscando combater militantes comunistas que se opunham a suas arbitrariedades. Firmada extraoficialmente em 1975, ela permitia que os militares dos países signatários circulassem livremente pelas fronteiras e trocassem informações para desaparecer com os opositores dos regimes. Nunca antes a América Latina esteve tão unida.

Comício do presidente João Goulart em Recife/PE em setembro de 1963 (Foto: Arquivo Nacional)

Obviamente, é necessário muito mais do que meia dúzia de parágrafos para entender por que o Brasil e seus vizinhos são o que são hoje. No entanto, nos debruçando sobre o passado – e sobre o Cinema que o reconstrói –, podemos traçar paralelos, entender motivações e nos sensibilizar com as consequências da violência em busca de um objetivo: que não se repita.

Un pueblo sin memoria es un pueblo sin futuro

São muitas as faces que esse “Cinema de memória”, se assim podemos chamá-lo, assume. Os documentários são, talvez, a principal categoria que vem à mente quando pensamos nessa ideia, pois optam por trabalhar com reconstituições dos fatos e com os personagens que deles participaram ou por eles foram impactados. Alguns filmes desse gênero são trabalhados de uma forma mais linear, onde a narrativa, apesar de dependente do ponto de vista do documentarista, é pouco maleável, mas não menos sensível. 

O dia que durou 21 anos, maravilhoso trabalho de Camilo Tavares, pode ser entendido dessa forma, já que, apesar da estética dura de Tavares, a obra é feliz em suas escolhas narrativas. Isso também pode ser visto em Torre das donzelas, da cineasta Susanna Lira. Mesmo que haja um distanciamento da realizadora em relação à história, isso não impacta na forma como o projeto retrata, com muito carinho, suas entrevistadas – todas mulheres que foram presas no Presídio Tiradentes (SP) durante a ditadura militar.

Ex-presas políticas conversam sobre o passado em cena de Torre das donzelas (Foto: Modo Operante Produções)

No entanto, há uma outra gama de obras que entendem seu realizador como parte determinante do projeto, em que seu “eu” é diretamente atrelado à história principal. Nesse caso, Carol Benjamin e o seu Fico te devendo uma carta sobre o Brasil merecem atenção. No filme, a diretora utiliza da vivência com seu pai, César Benjamin, ex-preso político, para contar a trajetória autoritária do país e demonstrar como o esquecimento pode ser usado como ferramenta política, o que aconteceu com a promulgação da Lei da Anistia.

O cineasta não precisa se colocar em seu filme para tratá-lo com sensibilidade. Independente do estilo da narrativa, o importante, aqui, é entender os vários jeitos em que se pode trabalhar com a memória da ditadura militar brasileira. 

Apesar da forma mais óbvia de se pensar o Cinema de memória ser através dos  documentários, eles apenas dividem o palanque com uma variedade de gêneros que se propõem a destrinchar essa pulsante cicatriz que não cobre apenas o solo brasileiro. Para quem ainda está em clima de Oscar, não faz muito tempo que os hermanos emplacaram um título na competição – em 2023, Argentina, 1985 concorreu ao Oscar de Melhor Filme Internacional, mas perdeu para o alemão Nada de novo no front.

Flutuando entre uma espécie de biografia dramática e thriller judicial, o longa é dirigido por Santiago Mitre e levou multidões de argentinos para os cinemas em 2022 ao retratar o “Julgamento das Juntas”, responsável por condenar os militares que estiveram à frente do regime de 1976 a 1983. Estima-se que a ditadura argentina vitimou cerca de 30 mil pessoas entre mortos e desaparecidos.

O Julgamento das Juntas é retratado no filme Argentina, 1985 (Foto: La Unión de Los Ríos)

Coincidentemente, foi em 1985 que a Argentina lançou outro de seus clássicos do Cinema de memória. Com direção de Luis Puenzo, A história oficial não aborda diretamente um fato histórico ou personagem, mas se utiliza do drama do roubo de crianças na ditadura para estruturar sua narrativa. Assim, as Abuelas de Plaza de Mayo acompanham a personagem de Norma Aleandro na busca pela origem de sua filha adotiva, de forma que seu caso represente não só a alienação da classe média no período, como a luta das madres e das próprias abuelas por justiça.

Eu acredito é na rapaziada

É até sem graça comentarmos sobre a riqueza do Cinema argentino quando este tem, a seu alcance, um país que passou a limpo sua história; infelizmente, são poucos os que podem recriar nas telas um caso bem sucedido como o julgamento de 1985. Nós, brasileiros, estamos na fatia maior que não se gaba de tal privilégio – nossos ditadores e torturadores morreram pacíficos de idade avançada, ao lado de suas famílias, e sem responder por crime algum. 

Por isso, fazemos histórias que resgatam a memória de ícones da resistência em busca de dar a homenagem digna que lhes foi negada em vida. Nesse sentido, Marighella foi um filme corajoso. O primeiro trabalho de Wagner Moura na direção foi lançado nos cinemas em 4 de novembro de 2021, no dia exato em que o assassinato do líder revolucionário de esquerda completou 52 anos. No entanto, essa não era a data prevista inicialmente, visto que a biografia de Carlos Marighella estreou no Festival de Berlim em 2019, três anos antes.

O relacionamento do guerrilheiro com o filho é destaque em Marighella (Foto: Globo Filmes)

Entre a pandemia de coronavírus e as burocracias da Ancine, Moura denunciou que o filme estava sofrendo censura dos órgãos federais, que empacaram com seu lançamento. A denúncia do cineasta não foi descabida, já que, nesse período, quem estava à frente da presidência da República era Jair Bolsonaro, político de extrema-direita que passara sua carreira exaltando os feitos dos militares. Marighella, por sua vez, foi deputado pelo Partido Comunista Brasileiro e líder da Ação Libertadora Nacional, que fazia oposição armada à ditadura. 

Lançar uma biografia que humanize um guerrilheiro negro em meio a ameaças contra a democracia não é uma tarefa fácil – principalmente quando o guerrilheiro em questão foi considerado “o inimigo nº 1 do Brasil” pelo aparato militar. Para além de um filme dramático, o longa também aproveita para pincelar cenas de ação e retratar uma linda relação entre pai e filho, desmanchando a ideia de “terrorista” que a narrativa oficial buscou, por tanto tempo, concretizar na memória coletiva.

Traçando uma linha em filmes que seguem essa motivação de reviver a luta de seus biografados, títulos como O que é isso, companheiro?, Zuzu e Batismo de Sangue não se acanham, até porque Jair Bolsonaro não é um fato isolado na história da nossa frágil democracia, nem mesmo o primeiro político a acenar positivamente à ditadura. Cada filme carrega sua bravura em sua determinada época de lançamento.

Guerrilheiros planejam o sequestro do embaixador estadunidense no filme O que é isso, Companheiro? (Foto: Pandora Cinema)

Na construção dessa arte memorialista, Lúcia Murat, cineasta e ex-integrante do MR-8, é referência com sua cinematografia. Ao longo da carreira, a diretora abordou a ditadura militar a partir de pontos de vista variados. Entre A memória que me contam, Quase dois irmãos, Uma longa viagem e O mensageiro – o caçula que chegou aos cinemas em 2023 –, Lúcia revive, indiretamente, as torturas que sofreu nas mãos dos agentes da repressão enquanto tenta exorcizar a “culpa que possui por estar viva”, como revelou em entrevista ao jornal O Globo.

 Inclusive, em 1989, apenas um ano depois da promulgação da Constituição Cidadã, Murat lança aquela que é, para muitos, sua obra-prima: Que bom te ver viva. Ao idealizar uma narrativa não-convencional, a diretora e sua protagonista, Irene Ravache, se misturam em uma dança frenética acompanhadas dos relatos de militantes mulheres que foram presas durante a ditadura militar. Documentário e ficção iniciam um relacionamento íntimo pelas lentes decididas da diretora, que acompanham suas personagens tanto fictícias quanto reais.

Sem justiça, não há paz

Poderíamos passar horas discutindo sobre as tantas obras que o Cinema brasileiro nos proporcionou e proporciona, mesmo enquanto a sombra da extrema-direita se ergue sobre nós e lunáticos de verde-e-amarelo invadem o Congresso Nacional. Inclusive, se Brasil e Argentina são rivais natos no mundo do futebol, no Cinema estão mais para companheiros de luta e de luto. E, claro, entre a ascensão de conservadores na presidência e a luta interminável pela garantia de direitos sociais, não estão sozinhos.

Lúcia Murat foi presa e torturada pela ditadura militar na década de 70 (Foto: Taiga Filmes)

Se não podemos falar de tudo, por que não falarmos do chileno No, de Pablo Larraín, onde o foco vai para o plebiscito que decidiu o fim da ditadura de Augusto Pinochet? Por que não falamos do uruguaio Uma noite de 12 anos, em que o diretor Álvaro Brechner reconta a história de José Mujica e dos Tupamaros? Por que não falamos da Operação Condor e de como é retratada em Olvidados, obra boliviana de Carlos Bolado? E, que diabos, por que não falamos de Matar a un muerto e dos cadáveres que a ditadura paraguaia deixou para trás? Não falamos porque nossa memória é fraca, nossa verdade é distorcida e nossa justiça é conciliatória.

Quem sabe podemos até viajar rumo à Guatemala, o primeiro país a sofrer uma intervenção da CIA em sua política nacional, e ficarmos cara a cara com La Llorona, que dispensa o lugar-comum dos dramas históricos. Dirigido por Jayro Bustamante, o filme, na verdade, está mais próximo ao terror, onde o assombrado pela entidade local é o ditador responsável pelo genocídio de 1.700 indígenas maias-ixiles nos anos 80. Aqui, a Llorona não procura novas crianças; ela procura o assassino das suas.

As mulheres de La Llorona são as peças-chave da narrativa (Foto: La Casa de Producción)

Entre tantos exemplos, fica claro que o Cinema da América Latina – com um apelo especial ao brasileiro – nunca se deixou abater pelos dedos na cara que recebeu dos golpistas.  Ele é essencial para aproximar o grande público do que um dia fomos, até porque só podemos entender o presente se nos voltarmos ao passado. Em tempos de autoritarismo tropical, toda ajuda é bem-vinda. 

A memória, enquanto organismo vivo e mutável, se adapta aos agentes políticos que a detém. Por isso, enquanto não acertarmos contas com a nossa própria história, enquanto não continuarmos “remoendo o passado”, as raízes podres das ditaduras continuarão subindo pelas árvores das democracias latino-americanas. 

Não podemos esquecer. E, com certeza, não podemos perdoar.

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